Este trabalho tem um preço

É muito provável que uma mulher emigrante vá procurar emprego e lhe digam que tem falta de habilitações. Porquê, se sabe cozinhar, tratar da casa, cuidar dos filhos? A Mazí Mas nasceu para atribuir um valor ao trabalho não reconhecido, pondo mulheres refugiadas a cozinhar, sim, mas num restaurante.

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Uma mulher criou os seus vários filhos. Todos os dias garantia que havia comida na mesa, preparava almoço, preparava jantar. E até cozinhava bastante bem. Foi assim durante anos e anos. Há um dia em que é obrigada a deixar o seu país – conflitos armados, crise económica, perseguições religiosas, o que for. Atravessa todo um continente, todo um oceano, e muito a custo chega ao destino. Tenta arranjar um emprego. Dizem-lhe que não tem qualificações. O tempo que passou à volta da cozinha não conta? Não.

Esta mulher não tem um nome, tem milhares e milhares, senão milhões. Esta mulher pode ser, por exemplo, Maria Marouli, que cresceu na ilha grega de Evia, casou com um carpinteiro e em 1967, depois do golpe militar, viu-se obrigada a emigrar para os Estados Unidos com os dois filhos adolescentes. Não falava inglês fluentemente, tinha poucas habilitações académicas — deixara de estudar depois da primária — ninguém lhe dava emprego. Mas era uma cozinheira excepcional e tinha o sonho de abrir uma padaria com uma amiga; tinha até o apoio de algumas pessoas da sua comunidade. Mas o marido não a deixou: “As mulheres não têm que estar a gerir negócios; o teu lugar é a tomar conta dos filhos”. A vida fora de casa estava-lhe praticamente vedada. Maria nunca abriu a padaria. Mas pôs um anúncio no jornal para tomar conta de crianças. E subitamente estava com uma aos seus cuidados: Nikandre Kopcke.

Agora, a criança, filha de pai alemão e mãe grega, que nasceu em Berlim, cresceu em Nova Iorque e vive há vários anos em Londres, é mulher também. Nikandre Kopcke (também lhe chamam Niki) tem 29 anos, o cabelo comprido, argola de prata no nariz. Esteve em Lisboa para a conferência Women of Wisdom, sobre mulheres empreendedoras e liderança. Foi convidada por causa do seu projecto Mazí Mas — “connosco”, em grego. E explicou que o seu projecto nasceu por causa de histórias como a de Maria Marouli. A conversa com o PÚBLICO dividiu-se entre um café no Bairro do Rego, numa manhã ventosa, e um almoço na Cozinha Popular da Mouraria — que a deslumbrou.

Mazí Mas nasceu porque, por um lado, “as oportunidades de emprego para mulheres emigrantes são muito poucas”, explica. Por outro, há um “trabalho valioso que as mulheres fazem em casa e não é remunerado”.

Na Universidade de Edimburgo (Escócia) e nas pós-graduações em Londres (na London School of Economics) estudou as questões de género. O resto veio quase como uma conta de somar. “Comecei um voluntariado quando fui para Londres porque queria conhecer pessoas. Fui trabalhar para cozinhas — cafés comunitários, um centro que todas as semanas oferecia uma refeição quente a quem necessitasse — e conheci muitas, muitas mulheres refugiadas, emigrantes, vindas de todas as partes do mundo, com histórias parecidas com a da minha ama. Estavam em Londres, não conseguiam arranjar trabalho e eram empurradas para o serviço de voluntariado em vez de trabalhar, porque não há emprego para elas. Isto por várias razões: não falam bem a língua, há discriminação activa, especialmente contra mulheres com filhos, e porque não têm uma experiência laboral recente — deixaram as suas carreiras para ter filhos. Quando emigram, querem primeiro ajudar os filhos a instalarem-se antes de elas próprias arranjarem emprego — isto acontece agora com muitos refugiados sírios. O que significa que, muito provavelmente, elas próprias não conseguirão arranjar trabalho e entrarão num ciclo de desemprego. Sem experiência profissional recente, estão tramadas. E como as mulheres têm filhos pequenos, precisam de um trabalho flexível, que possa adaptar-se aos seus horários e responsabilidades — o que só se consegue nos cargos mais elevados. Se somos brancos e privilegiados, safamo-nos; se somos mulheres que vieram de certas partes do mundo, não.”

Uma cozinha pop-up

Foi em 2012 que “tudo se encaixou”. “Já sabia que queria criar um espaço onde as mulheres se juntassem, para uma comunicação intercultural. É preciso apoiar a integração em cidades como Londres, onde há esta incrível riqueza e diversidade cultural — numa única rua temos polacos, russos, etíopes, latino-americanos — mas, ao mesmo tempo, as pessoas não estão realmente a interagir”.

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A iraniana Zohreh Shahrabi na cozinha. O projecto Mazí Mas – “connosco”, em grego –nasceu porque “as oportunidades de emprego para mulheres emigrantes são muito poucas” Marianne Chua

Para além disso, nas cozinhas onde fazia voluntariado, algumas mulheres levavam-lhe o jantar. "Achavam que eu não andava a alimentar-me bem. Era uma comida incrível, que não se conseguia num restaurante, porque eram as coisas que elas cozinhavam em casa. Eu vivia no East End de Londres, onde 98% da população é muçulmana — do Bangladesh, Paquistão. Olhava para as mulheres no mercado e ficava fascinada com os legumes que elas compravam e que eu nunca tinha visto. Queria ser convidada para ir a casa delas, ver o que elas iriam fazer para o jantar. ‘Isto é uma ideia de negócio!’ Foi assim que o Mazi Mas apareceu. Eu tinha a certeza que havia outras pessoas a achar o mesmo que eu.” Agora era arranjar um local onde “todas as peças se juntassem”.

O puzzle completo é um restaurante pop-up, que agora está no centro de Londres, onde as chefs vêm de países diferentes, cozinham aquilo que fariam em casa, e ficam a saber como funciona o negócio da restauração para, mais tarde, poderem montar o seu próprio negócio.

“A minha primeira preocupação era atribuir um valor ao trabalho informal que aquelas mulheres fazem durante toda a vida sem serem pagas — um trabalho que nós não reconhecemos. Queria, de uma forma muito prática, atribuir-lhe um preço e fazer com que estas mulheres sejam pagas por aquilo que fazem… Todas as mulheres com quem trabalho vieram para o Reino Unido, tentaram encontrar um emprego e foi-lhes recusado uma e outra vez. E o que lhes disseram de todas as vezes foi que elas não tinham habilitações. Não é verdade. Têm imensas habilitações, mas não aquelas que são reconhecidas ou valorizadas”.

Pelo caminho, e através de pratos da Síria, Irão, Nepal, Senegal, Peru, Brasil, Etiópia…, contribui-se  também para que sejam derrubadas algumas das barreiras “entre as pessoas que já estão estabelecidas no país e as que acabaram de chegar. Inverter a tendência desta percepção negativa sobre os emigrantes e os refugiados, que está num ponto muito alto no Reino Unido, como em quase toda a Europa. A distinção entre refugiados e emigrantes é artificial, porque a emigração motivada por questões económicas é igualmente imposta. O Mazí Mas é sobre todas estas pessoas que acabaram de chegar ao Reino Unido.”

Assim, se alguém quiser juntar-se ao projecto, terá de passar por uma primeira entrevista, para se saber de onde é, o que precisa, o que sabe fazer. “Tem de ter o perfil certo: um nível de inglês suficiente para poder trabalhar na cozinha em segurança (isso é muito importante, porque não temos ainda lições de inglês); e interesse em ter um negócio no ramo da alimentação. Daremos formação a quem queira montar o seu próprio negócio. Não é preciso ter nenhuma experiência profissional, porque é isso que recebem lá.”

Se estes requisitos forem cumpridos, segue-se uma primeira sessão culinária que geralmente decorre em casa das candidatas, onde se pede para cozinharem três ou quatro pratos, “para percebermos como cozinha, o que cozinha e se é algo que se adapta bem ao restaurante”. E com base nisso há dois cenários: concluir que ainda não está totalmente preparada para contribuir para o menu, mas pode ser contratada como subchefe e dar apoio na cozinha; se está preparada para contribuir para o menu, é contratada logo como chef, e alguns dos seus pratos saltam para a carta.

“Neste momento, temos sete chefs a trabalharem no restaurante: do Brasil, Etiópia, Irão, Peru, Senegal, Turquia e Nepal. O menu é decidido colectivamente e muda sazonalmente. Temos de ter em conta a relação qualidade-preço, coisas que se possam aguentar bem ao longo da semana, que terão saída, claro, para haver margem comercial. Os ingredientes são os da estação, procuramos preços baixos, mas também compramos em quintas próximas, 50-70% biológicos. E temos também em consideração quem teve os pratos no menu durante a estação anterior”. Durante o Inverno estiveram pratos da Etiópia (“uns vegetais óptimos!”), Irão (frango com açafrão) e Brasil (feijoada), comidas “mais pesadas e reconfortantes”. No final deste mês virá a carta da Primavera-Verão: moqueca brasileira, ceviche peruano...

As novas cozinheiras são acompanhadas por chefs já com experiência para aprenderem a construir um menu, fazer a apresentação dos pratos, perceber quais funcionam melhor e o que deve ser aperfeiçoado; e recebem lições sobre segurança alimentar. Aprendem enquanto trabalham, com remuneração, e o tempo que ficam depende delas. “Normalmente entre um e dois anos, mas queremos garantir que as pessoas saem para um emprego e isso depende das oportunidades. Estamos a começar um projecto que implica quatro horas de formação durante um ano [de gestão empresarial]. E isso servirá para elas arrancarem com o seu próprio negócio. Avançámos com isso num projecto-piloto, fizemos um programa de três meses, quatro horas por dia. Mas é preciso financiamento e não estamos a recebê-lo”.

Virar a casa do avesso

Niki Kopcke orgulha-se de o Mazí Mas “contribuir para a visibilidade destas mulheres na sociedade britânica. Este foi um dos meus principais objectivos, porque elas são totalmente invisíveis. Não têm voz, raramente são vistas ou tidas em conta, as suas necessidades são negligenciadas, mas por causa da cobertura nos media que tivemos, isso [maior visibilidade] aconteceu. Para mim, a parte mais emocionante é quando as chefs e os nossos clientes criam uma relação e elas se sentem respeitadas. No fim de contas, todos queremos ter o nosso lugar na sociedade. Isso é mais importante do que o dinheiro.”

Não imagina o Mazí Mas a não ser sobre comida, “porque é isso que as mulheres fazem em todo o mundo: alimentam toda a gente.”

Reparou com surpresa que, nos restaurantes em Lisboa, sempre que espreitava para a cozinha, estava uma mulher a tomar conta do fogão. “Isso não acontece em Londres, de forma nenhuma”. Antes, já comentara: “O que me deixa louca é que a indústria culinária praticamente não tem mulheres. Quando entramos nas cozinhas profissionais, primeiro são sempre brancos e depois são sobretudo homens, porque as mulheres a partir de certo ponto não progridem porque têm de cuidar da família. Mas se formos olhar para quem está a cozinhar em casa, em todo mundo, são muito mais as mulheres. A minha ideia era agarrar nisso e levar para um campo profissional. Quero virar a casa do avesso e levar este trabalho não pago para o centro. E quero ver mais mulheres nos negócios da restauração e mais mulheres de diferentes origens nas cozinhas profissionais. Acho revoltante que elas não estejam lá e que o Reino Unido, que está a atravessar por este renascimento gastronómico (de repente, toda a gente se interessa por comida), só tenha homens brancos na casa dos 30 e 40 a tirar partido disso. Mais uma vez, as mulheres estão a ficar de fora de uma coisa pela qual, historicamente, têm sido responsáveis.”