Uma cidade (ainda) sob influência

Quatro meses depois, o Porto parece ainda não ter conseguido digerir a inesperada morte do seu carismático – e omnipresente – vereador da Cultura.

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Paulo Cunha e Silva em Campanhã, um dos seus territórios de acção preferenciais FERNANDO VELUDO/NFACTOS

“Até agora acreditava que não havia pessoas insubstituíveis, mas acho que não é possível substituir o Paulo”, diz a fotógrafa Manuela Monteiro, que em 2013 abriu com o marido, João Lafuente, uma galeria e um centro multiusos  o Espaço Mira e o Mira Fórum  em dois armazéns de Campanhã, uma das zonas mais deprimidas do Porto, projecto que Paulo Cunha e Silva gostava de citar como um bom exemplo do que pretendia para a sua “cidade líquida” multipolar, onde a cultura pudesse irromper nos lugares mais frágeis e improváveis.

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“Até agora acreditava que não havia pessoas insubstituíveis, mas acho que não é possível substituir o Paulo”, diz a fotógrafa Manuela Monteiro, que em 2013 abriu com o marido, João Lafuente, uma galeria e um centro multiusos  o Espaço Mira e o Mira Fórum  em dois armazéns de Campanhã, uma das zonas mais deprimidas do Porto, projecto que Paulo Cunha e Silva gostava de citar como um bom exemplo do que pretendia para a sua “cidade líquida” multipolar, onde a cultura pudesse irromper nos lugares mais frágeis e improváveis.

Também o poeta Daniel Jonas vê o carismático programador, e mais recentemente vereador da Cultura de Rui Moreira, como “uma figura tão singular e electrificante, e com uma avidez poliédrica por tudo o que fosse consumível artístico”, que “a sua falta é do tipo insubstituível”.

Observando como Cunha e Silva, associando a sua experiência e dinamismo a uma “visão futurista” da Cultura, “conseguiu em muito pouco tempo transformar uma cidade”, o artista João Louro afirma: “Não há pessoas insubstituíveis, mas para mim o Paulo é mesmo a excepção que confirma a regra."

Esta ideia de que ninguém pode verdadeiramente substituir Cunha e Silva no lugar tão abruptamente deixado vago pela morte do vereador da Cultura em Novembro do ano passado é uma constante em todos os depoimentos que o PÚBLICO ouviu, como é também unânime o elogio da decisão tomada por Rui Moreira de assumir ele próprio o pelouro. “Achei muito bem, coitado do desgraçado que viesse a seguir”, diz Manuela Monteiro. “Claro que foi inteligente não ter nomeado ninguém, porque quem viesse era para queimar”, concorda Miguel von Hafe Pérez.

O único problema da solução encontrada pelo presidente da Câmara do Porto, que por enquanto ainda não quis falar ao PÚBLICO destes primeiros meses sem o seu vereador da Cultura, é o de ela dificilmente se poder eternizar, sobretudo se Moreira pretender candidatar-se a um segundo mandato.

Para João Louro, uma das virtudes da decisão do presidente da Câmara, que quis “deixar este pequeno vazio”, é justamente a de “dar tempo a que outra pessoa apareça naturalmente”. E lança um aviso à navegação: “Quem vier a ocupar o lugar pode não ter a mesma experiência, mas terá de ter a mesma paixão inabalável, e terá de fazer as coisas de acordo com as suas próprias características, porque o maior tiro no pé seria tentar imitar o Paulo Cunha e Silva."

"Agent provocateur"
Mas para já ninguém parece capaz de pensar, mesmo em abstracto, noutra pessoa e noutro modelo. Toda a cidade cultural está ainda sob a influência do fascínio de Paulo Cunha e Silva e incapaz de digerir esta morte: “Aos 53 anos uma pessoa está no auge da vida, e ele tinha muito para oferecer a esta cidade", diz Von Hafe Pérez, acrescentando: “A expectativa generalizada é de que o Rui Moreira se vai recandidatar e ganhar, e portanto estamos a falar de outros seis anos, e isso ainda nos deixa um sabor mais amargo na boca”. O que diz muito de quanto lhe fica a dever este renascimento cultural do Porto, mas também sugere uma omnipresença que, no futuro, e um tanto paradoxalmente, poderia acabar por constituir um risco. Saber como Paulo Cunha e Silva, alguém que logo na sua primeira entrevista ao PÚBLICO após assumir funções, afirmava não querer integrar “os homeless da cultura” e confessava o seu medo do funcionamento em rede, “porque a rede nivela tudo”, iria lidar com o perigo de se tornar uma espécie de metonímia da cultura no Porto, é uma questão interessante, mas que infelizmente não terá resposta. 

Vânia Rodrigues, responsável da gestão e programação cultural da Mala Voadora, uma companhia de Lisboa que em 2013 assumiu “o risco gigantesco” de abrir uma segunda sede no Porto, diz que não sabe se o projecto poderia ter subsistido caso a sua chegada à cidade não tivesse coincido – “foi mesmo uma feliz coincidência” – com o início de funções de Cunha e Silva, com quem depois colaborou várias vezes, designadamente no programa Cultura em Expansão, que este lançou para levar a música, o teatro e outras artes aos bairros do Porto.

Num texto que escreveu para um programa da Mala Voadora, Uma Família Inglesa, logo após a morte do vereador, Vânia Rodrigues lamenta o desaparecimento “de um dos mais brilhantes agents provocateurs da cidade”. Ao PÚBLICO, sublinhou a identidade de pontos de vista entre a filosofia da Mala Voadora e o pensamento do vereador, e só depois de reconhecer o quanto a companhia lhe deve, acrescentou, en passant, que essa “grande cumplicidade” não se traduzia em nenhum apoio institucional.

O mesmo aconteceu na conversa com Manuela Monteiro. Só depois de agradecer todo o apoio de Cunha e Silva, que diz ter percebido antes dela própria e do marido o que o Mira podia ser – hoje é um “estudo de caso” que serve de tema a teses de doutoramento –, é que explicou, e mais para frisar o quanto a sua admiração era sincera e incondicional, que nunca teve nenhum financiamento da autarquia. Testemunhos que não deixam de ser significativos, tendo em conta os ainda activos estereótipos sobre a alegada subsídio-dependência dos agentes culturais tantas vezes invocados pelo antecessor de Rui Moreira no cargo, Rui Rio.

Daniel Jonas, que preferiu enviar um breve depoimento escrito, termina-o num tom que se adequa bem a este assumido momento de homenagem: “De tanto bater o seu coração parou, como diz o filme [de Jacques Audiard]. Mas, à semelhança de outra figura histórica, ofereceu-o — e em vida — à sua cidade."