Para acabar de vez com o espectador
Eisa Jocson é a rapariga do varão que reaparecerá de texanas qual macho dancer num clube de Manila. François Chaignaud é a ave rara da dança francesa em mais uma curva da sua espiral transformista. Dois corpos ao serviço de outra lógica de consumo que o Rivoli cruza no ciclo Voyeur?
François Chaignaud é o rapaz de sombra dourada nos olhos e unhas impecavelmente pintadas que — assistimos a tudo no YouTube — se senta para conversar com o público do festival Montpellier Danse acerca de Dumy Moyi e acaba a explicar que a espiral transformista que o tem levado da penetração anal (Pâquerette, 2008) ao hula hoop (Duchesses, 2010) ao twerk (altered Natives’ Say Yes to Another Excess, 2012) e agora ao theyyam não é um statement de extravagância (reivindicá-la, diz, é dar ainda mais poder à norma, admitir o seu direito a governar o mundo) mas a única maneira de “permanecer vivo”.
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François Chaignaud é o rapaz de sombra dourada nos olhos e unhas impecavelmente pintadas que — assistimos a tudo no YouTube — se senta para conversar com o público do festival Montpellier Danse acerca de Dumy Moyi e acaba a explicar que a espiral transformista que o tem levado da penetração anal (Pâquerette, 2008) ao hula hoop (Duchesses, 2010) ao twerk (altered Natives’ Say Yes to Another Excess, 2012) e agora ao theyyam não é um statement de extravagância (reivindicá-la, diz, é dar ainda mais poder à norma, admitir o seu direito a governar o mundo) mas a única maneira de “permanecer vivo”.
Vivo, talvez até mais do que isso, foi como ele se sentiu em Kerala, no Sul da Índia, quando ali assistiu, “fascinado”, às cerimónias do theyyam, um ritual devocional cujo aparato visual e sensorial o bailarino e coreógrafo demorou três anos a metabolizar. Dumy Moyi, o solo com que esta esta sexta-feira abre o ciclo Voyeur? do Teatro Municipal Rivoli, no Porto (sessões às 19h, às 21h30 e às 23h15, também no sábado), vem dessa experiência maior do que a vida — e certamente maior do que a vida “autorizada” do espectáculo de dança tal como ele se deixou institucionalizar no circuito ocidental — que terá sido testemunhar “a opulência visual, a sofisticação e o virtuosismo arrebatadores dessas cerimónias”, explica ao Ípsilon por email. Mas vem também do efeito muito particular que essa impressão provocou num corpo que, como o dele, se consuma e se compraz na virulência do contágio — também no sentido físico, ainda que figurado, de sexo sem protecção — com todo o tipo de práticas de dança, incluindo as mais desqualificadas, essas que estão na rua, no gueto, na discoteca, na MTV. Uma epifania, sim, que ele quis ao mesmo tempo reproduzir e desconstruir nesta peça tão fulminante como uma aparição (35 minutos) mas tão serial como uma sessão de cinema (ou um peep-show).
Nessas ruas do Sul da Índia então transfiguradas pelas formas excessivas do theyyam, Chaignaud encontrou os dois paradoxos que ecoam neste solo: “Uma dança com uma energia e uma amplitude que a imponência dos figurinos não deixaria prever; e um fausto que não isola nem protege os actores da multidão, pelo contrário.” A custo, conseguiu traduzi-los — mas não à letra. Pedras preciosas, pêlos, penas, pássaros inteiros: os figurinos-escultura que Romain Brau desenhou para este espectáculo têm seguramente mais a ver com quem os veste e os despe praticamente em cima do público, François Chaignaud, a ave mais rara da dança contemporânea francesa, do que com a gramática do theyyam. (Novamente, não se trata de afirmar a extravagância, mas de obrigar o corpo a reagir às dificuldades para mostrar que não se limita a repetir, como um autómato, aquilo para que foi treinado no conservatório.)
Mexer-se dentro dos figurinos desmesurados que pediu a Romain Brau para lhe desenhar já foi toda uma aventura: “Falei-lhe da minha vontade de alterar as proporções do corpo na largura e na altura, de utilizar materiais compósitos, orgânicos e artificiais, de sobrecarregar o figurino de detalhes e de técnica, como no theyyam. E disse-lhe para não se preocupar com os meus movimentos. Que quanto mais improváveis ou mais complicados fossem, melhor. Isso permitiu efectivamente que os figurinos se encarregassem de uma parte da coreografia, em função do que tornam impossível ou desejável.” Mas depois dessa aventura vieram outras: Chaignaud quis fazer de Dumy Moyi “um solo de dança, um acontecimento visual e um recital”, pelo que se viu não só a equilibrar pássaros azuis na cabeça como a fazê-lo enquanto canta árias ucranianas do século XIX como a que dá título à peça, zarzuelas filipinas dos anos 30 ou canções medievais sefarditas (procurou temas confessionais ou histórias de enfeitiçamento, para se colocar “numa situação de vulnerabilidade ou de perigo em relação ao público”). Preocupação de historiador desiludido com o desenraizamento da dança contemporânea, admite: “O canto e a dança são como duas irmãs ou dois irmãos, mas é muito raro convergirem ao mesmo tempo num mesmo corpo — a não ser em certas práticas rituais, no music-hall ou na cultura pop. Para mim é uma espécie de ideal poder fundir as duas poéticas. Ao mesmo tempo, a multidão de línguas, de estilos e de épocas contraria a ideia de uma inspiração unívoca: é um mundo inteiro que se desencadeia graças à voz.”
Outras referências contraditórias, ou pelo menos desirmanadas, convergem nesta peça que Chaignaud apresenta — e isto sim é um statement — como “um antídoto contra a convenção teatral ocidental”. Dumy Moyi é a sua maneira de fazer justiça — com as próprias mãos — a uma tradição fundadora, mas esquecida, da dança contemporânea, que radica tanto no submundo vaudevilliano do espectáculo de feira de que emergiram figuras canónicas (Ruth St. Denis, Loïe Fuller) como no fascínio ocidental perante as danças exóticas, amplificado pelas grandes exposições coloniais. Perguntamos-lhe que razões de queixa tem do espectáculo convencional e ele responde com um smile, antes de desenvolver: “O facto de se ter uniformizado e cristalizado: uma representação única de uma hora a 90 minutos às 20h30. A história tem tantas outras possibilidades.”
Sozinho ou com a argentina Cecilia Bengolea, o seu trabalho tem sido o de não recusar nenhuma, venha de onde vier. Do Kerala, cujas danças rituais o fazem querer discutir — mas sem “a impostura” de se armar em xamã — “o sentido ou a falta de sentido que as sociedades europeias modernas dão aos espectáculos”. Da América, onde nasceu o entretenimento moderno cujos dispositivos, mesmo os mais desalmados como o da repetição em série, lhe parecem “um fomidável campo de trabalho” (agora que o testou, percebeu que lhe permite “encontrar um estado e uma intensidade impossíveis noutras configurações”). Ou do submundo global da indústria do sexo onde, atravessada certa linha vermelha, o espectador passa a responder pelo nome feio que está no título deste ciclo. E onde, se em vez do Kerala tivesse visitado as Filipinas, François Chaignaud talvez tivesse encontrado, a estudar as macho moves no canto mais escuro de um bar gay para depois as reproduzir, uma coreógrafa e bailarina chamada Eisa Jocson.
No submundo
Também é uma história de transformismo, a desta rapariga que o ciclo Voyeur? primeiro nos mostrará no varão, em Death of a Pole Dancer (sexta e sábado, às 19h45) e que logo a seguir reaparecerá como o rapaz de camisola de cavas, calções de camuflado, joelheiras e texanas de Macho Dancing (idem, às 22h15), transferindo para o circuito das artes performativas, e portanto tornando “espectacular”, uma forma de entretenimento — pago — que se popularizou em clubes nocturnos gay de Manila mas nunca teve nem nunca terá grande reputação.
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Como com François Chaignaud, a história de Eisa Jocson começou no ballet — mas o desvio foi muito maior. Estava a estudar escultura quando decidiu experimentar aulas de dança do varão e percebeu, pelo desprezo com que passou a ser olhada, o potencial que ali havia para reflectir sobre o lugar das danças ditas de entretenimento numa economia globalizada em que o corpo é só mais uma mercadoria, e para atirar à cara do espectador sentado no conforto do teatro a ambiguidade moral do seu estatuto. Não foi uma mudança assim tão radical, diz: “Continuo a fazer escultura, só que o meu material passou a ser o corpo, que eu moldo de acordo com contextos sociais específicos. É o material mais imediato, o que está mais à mão”, diz ao Ípsilon a partir de Bruxelas, o lugar onde em 2011 usou tudo o que sabia sobre o varão para começar a construir este espectáculo em que o faz em pedaços, assim como às expectativas dos espectadores. “Queria obrigá-los a olharem de outra maneira para o varão — a porem em causa aquilo que pensam que sabem. Curiosamente, aconteceu numa altura em que a dança do varão foi apropriada pelos ginásios e adquiriu outro estatuto: de repente, as mulheres de classe média-alta pagavam para aprender as danças pelas quais as prostitutas do red light district se faziam pagar.”
Foi em 2011, e entretanto Eisa quis ir aprender a ser homem — para largar a pele que entretanto lhe colaram e também para continuar a atirar para cima do palco questões de formação de género e de mobilidade social. “As pessoas que me vêem em Death of a Pole Dancer assumem que eu vivo da dança do varão e pronto. Mas quando me vêem reencarnar a seguir como homem em Macho Dancer [2013], com um vocabulário completamente diferente, percebem que eu não sou nem uma dançarina do varão nem um macho dancer — apenas alojo temporariamente essas personagens”, explica (mais recentemente, em Host, de 2015, reencarnou numa japayuki, nome que se dá às filipinas que vão entreter assalariados em bares do Japão — o seu país, admite, é “um campo de treino para mão-de-obra global”, e continua alegremente a exportar “empregadas domésticas, estivadores, acompanhantes…”).
Não houve, no caso da macho dance, nenhum fenómeno inesperado de mobilidade social como o que levou o varão para o ginásio — continua a ser uma actividade altamente estigmatizada, condição que Eisa Jocson não tem nenhuma intenção de pôr em causa. “Como artista, interessou-me o desafio de mudar de género, que me obrigou a pôr de lado não só a aprendizagem que fiz no ballet e no varão como toda a minha tradição corporal — andar, sentar, estar de pé, tive de reaprender tudo, porque o condicionamento de género a que o corpo é sujeito é terrivelmente profundo. Mas também me interessam as relações de poder nestes contextos de grande marginalidade, e que são bem mais complexas quando a transacção se faz entre dois homens — não quero de todo contribuir para a normalização do macho dance, ou pô-lo noutro patamar deste sistema capitalista.”
É ao espectador, não ao macho dancer, que ela quer pôr noutro patamar. Mas há sempre, como haverá este fim-de-semana no Rivoli, aquele momento em que ficam os dois ao mesmo nível.