Viajar é também trazer um pedaço do mundo de alguém

Quando viajamos, os dias perdem as horas, os minutos são segundos e o ritmo alucinante com que absorvemos o que desconhecíamos parece tão passageiro que nos desdobramos, tentando roubar tempo ao próprio tempo

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Viajar (sem qualquer dúvida) é das melhores opções que podemos tomar ao longo da vida. Seja para perto, seja para longe, conhecermos a cultura dos outros, levarmos e trazermos, sentirmos o que é distante mesmo ao nosso lado. Ritmar a vida por escalas ou estações, substituir a rotina pelo "check in" ou fazer dos dias cá... por lá é passar pela vida a saber vivê-la.

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Viajar (sem qualquer dúvida) é das melhores opções que podemos tomar ao longo da vida. Seja para perto, seja para longe, conhecermos a cultura dos outros, levarmos e trazermos, sentirmos o que é distante mesmo ao nosso lado. Ritmar a vida por escalas ou estações, substituir a rotina pelo "check in" ou fazer dos dias cá... por lá é passar pela vida a saber vivê-la.

Quando viajamos, os dias perdem as horas, os minutos são segundos e o ritmo alucinante com que absorvemos o que desconhecíamos parece tão passageiro que nos desdobramos, tentando roubar tempo ao próprio tempo.

Eu ocupo o meu a conhecer pessoas: as que nunca vira antes, as que posso nunca mais voltar a ver. Troco com facilidade uma subida à Torre Eiffel por meia dúzia de minutos com um estranho, porque a partilha é das maiores dádivas que temos. Atrás de cada pessoa existe uma vida que se pode repartir por histórias infindáveis.

Cruzar o nosso tempo com o de alguém, pode ser o resumo de uma vida maior que o monumento pelo qual se pagaria para entrar.

Os estranhos que costumam estar no passeio contrário, com quem tropeçamos na passadeira, com quem partilhamos o banco do parque, que esperam pela vez na fila para o WC, que estão à nossa frente na do almoço, que são uma troca de olhar, podem tornar-se epopeias de histórias e vidas preenchidas com tanto, podem ser contos, podiam ter sido os "hippies" que hoje dão lugar a um executivo. São linhas de memórias que nos fazem deambular no espaço e recuar no tempo. São história da própria história.

Em Amesterdão, prescindi da melhor rua de bares para reter cada palavra de Elisa, uma italiana que escolhera aquela cidade para passear de forma solitária e testar-se a si própria. Estava num banco sozinho como ela, e rapidamente chegámos ao diálogo. Não bebi a cerveja, mas trouxe comigo uma vida "cantada" em italiano ao ritmo de percalços ou da solidão.

Por Paris, abdiquei da típica subida à torre mais visitada do planeta porque percebi que o olhar do Jean-Pierre o levava a um passado que dava para três vidas, que a segunda Guerra Mundial lhe havia moldado aquele rosto. Mas o olhar, esse era uma fuga para o tempo em que o som de uma granada era rotina. Contara-me que nunca se recompôs, que aqueles tempos lhe levaram o sorriso aberto e franco. Hoje, sobrevivia resiliente aos últimos ataques que a sua cidade sofrera e que, no seu tempo, "já teriam terminado com aquilo de uma vez". Disse-me que gostava de conversar, que acredita na juventude —restam-lhe as memórias que nunca se apagam, nem com um sopro forte. Não subi à afamada torre, talvez um dia destes suba, mas, por enquanto, carrego comigo a vida de homem que já foi soldado e que as suas juras são as honras de um país. E isso não se troca por uma tarde de sol bonita.

Quatro dias passados em Londres: Portobello era um espaço que perdera importância porque nele convivia alegremente com James, o dono de uma livraria com serviço de chá, fascinado pela cultura portuguesa e conhecedor dos nossos costumes. Aquela coincidência de hábitos fez-me perceber que, num canto ao acaso do mundo, podemos ser considerados por um dos nossos maiores bens: os bons modos.

Esqueci-me de "As meninas" de Diego Velázquez porque, nesse instante que deveria ser marcante, Carmen sentava-se tomada pelo cansaço. Percebi que tremia e fiz-lhe companhia. Ainda que "baixinho", porque no Museu do Prado não se pode falar alto, conversámos um bom par de horas, por vezes entre risos quando ela me fazia recordar os tempos em que vindimava no Sul de França. Foi ali que conheceu o marido que a vida lhe levara no ano passado. E era no Prado que costumavam passar grande parte do tempo. Ela ainda volta uma tarde por semana, de forma a senti-lo mais perto. Ainda guardo comigo aquela mistura de expressões com mais de 80 anos.

Em Lisboa, e perdido entre colinas, por vezes finto o Tejo, o cheiro ou os sons que são únicos, por uma pessoa qualquer que me acrescenta vida à própria vida e que em conversa me faz sentir presente no 25 de Abril ou naquela revolução com mais de 40 anos, que eu apenas soube pelos livros da escola.

De cada vez que visito e revisito Lisboa somo pessoas, subtraio as horas perdidas e multiplico conhecidos, que muitos deles bem divididos pelo tempo já podem ser mais do que amigos.

Tenho em mim que viajar e conhecer um mundo novo é descobrir outras culturas nas gentes, no povo nativo ou no que está ali, mas pode ser de outro ponto qualquer. São as pessoas que passam por mim, as que nunca mais voltarei a ver, ou as que já se juntam à minha própria história e começam a fazer parte de uma vida que é a minha, só porque nos cruzámos no tempo e trocámos um instante que durará uma vida. São elas a parte integrante de cada viagem, que a fazem única e completa.

São gente que respira história e que, numa conversa, enquanto o mundo corre ou decorre ao ritmo dele, conquistam a eternidade na minha memória. Porque viajar é também trazer um pedaço do mundo de alguém.