Todas as noites Holofernes vai morrer às mãos de Judite
Numa homenagem à pintora Artemisia Gentileschi, Rui Catalão coloca todas as noites no palco do Teatro Nacional D. Maria II, até 27 de Março, a espada de Judite sobre o pescoço do Holofernes.
Inaugurada a 8 de Março de 2011, no madrileno Museu Thyssen-Bornemisza, a exposição Heroínas havia de revelar a Rui Catalão a dimensão de auto-representação na pintura de Artemisia Gentileschi. “Fiquei maravilhado”, recorda o dramaturgo dessa descoberta perante o quadro Judite e Holofernes, em que Judite, munida de uma espada e ajudada pela serva, procede à degolação do general assírio. Catalão, que faz do seu teatro um constante palco para a autobiografia, convenceu-se então de que a obra de Gentileschi espelha esse seu processo de se colocar em cada uma das suas criações. “Toda a pintura clássica dela é, na verdade, auto-representação”, defende. “Sempre que vai buscar temas do classicismo, uns da Bíblia, outros da cultura helénica, ela faz um auto-retrato. Mas no caso da Judite vai mais longe: não é um auto-retrato, é uma autobiografia escondida, um bocado como As Memórias de Adriano, da Yourcenar.”
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Inaugurada a 8 de Março de 2011, no madrileno Museu Thyssen-Bornemisza, a exposição Heroínas havia de revelar a Rui Catalão a dimensão de auto-representação na pintura de Artemisia Gentileschi. “Fiquei maravilhado”, recorda o dramaturgo dessa descoberta perante o quadro Judite e Holofernes, em que Judite, munida de uma espada e ajudada pela serva, procede à degolação do general assírio. Catalão, que faz do seu teatro um constante palco para a autobiografia, convenceu-se então de que a obra de Gentileschi espelha esse seu processo de se colocar em cada uma das suas criações. “Toda a pintura clássica dela é, na verdade, auto-representação”, defende. “Sempre que vai buscar temas do classicismo, uns da Bíblia, outros da cultura helénica, ela faz um auto-retrato. Mas no caso da Judite vai mais longe: não é um auto-retrato, é uma autobiografia escondida, um bocado como As Memórias de Adriano, da Yourcenar.”
E porquê autobiografia? Artemisia Gentileschi, nascida no final do século XVI, terá sido abusada ainda adolescente por Agostino Tassi, um dos pintores frequentadores do atelier do seu pai, que posteriormente se terá comprometido a casar com a rapariga para lhe salvar a honra – não se tendo esse casamento consumado, Artemisia acabaria no centro de um tortuoso julgamento. “Até morrer”, diz Catalão, “ela nunca deixou de voltar àquele tema.”
Judite, protagonizada por Ana Guiomar, estará em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, entre 10 e 27 de Março, e é, em primeiro lugar, “uma forma de homenagear alguém que fazia o mesmo trabalho” que o autor. “Obviamente com outras limitações, ela já estava a estudar-se, a estudar a sua própria experiência como matéria privilegiada para desenvolver o trabalho artístico.”
História mal contada
Querendo seguir os passos de Gentileschi, Catalão assumiu que teria de partir da mesma história bíblica que coloca Judite na tenda de Holofernes, embebedando o militar até este adormecer e então, finalmente, o degolar para pôr termo ao cerco da cidade de Betúlia. Só que esta cena capital, em que não se sabe se Holofernes tombou de coma alcoólico ou ficou tão sonolento com a ingestão desmedida de vinho que não pôde armar a sua defesa, depois de Judite avançar imperturbável pelo acampamento de um poderoso general e dele se acercar sem oposição visível, parece ao autor uma história “muito mal contada”.
Porque “esta história é um spoiler” (sabe-se de antemão que não há forma de o pescoço de Holofernes escapar à espada de Judite), a peça pode ser imaginada como a construção da narrativa na cabeça de Rui Catalão, estático diante do quadro de Gentileschi, no museu madrileno. Toda uma história em movimento até chegar àquele corolário de vitória dos mais fracos sobre os mais fortes. Se o texto afirma que “o medo é uma moda inventada pelas mulheres para terem os homens perto delas” e que, em contrapartida. “a guerra foi inventada pelos homens para não estarem com as mulheres”, Judite come o medo e pratica um acto de guerra.
A guerra está por todo o lado em Judite. Catalão, um confesso “esquemático”, preparou-se, em parte, a estudar literatura dedicada a estratégia militar, biografias de generais e fascinou-se com “o sentido de ordem, de rigor, da precisão geométrica na relação com o território e com a disposição dos elementos”. Nunca como em Judite o dramaturgo e encenador tinha encontrado terreno tão propício à exploração desse seu lado esquemático, trabalhando o espaço de uma forma matemática. Só que depois, no mesmo gesto com que Catalão diz libertar-se do conceito que o guia inicialmente, a realidade intromete-se e abre espaço para a espontaneidade – neste caso, reforçada pela presença de um “Exército de Crianças” que se renova a cada apresentação de Judite, um exército formado por alunos de escolas que todas as tardes trabalham com Catalão no espectáculo que se seguirá à noite.
O desfecho, esse, será sempre o mesmo. Numa mecânica de inevitabilidade que, pode dizer-se, caminha irremediavelmente para a fixação da imagem do quadro de Gentileschi.