Chamavam-lhe o "quinto Beatle", George Martin foi muito mais do que isso
Produtor britânico morreu aos 90 anos, anunciou o baterista Ringo Starr.
O produtor musical britânico George Martin, que transformou os Beatles em estrelas mundiais, morreu aos 90 anos, disse esta quarta-feira o baterista da banda Ringo Starr. "Deus abençoe George Martin. Paz e amor para Judy [a sua mulher] e para a sua família (...). Vamos sentir a falta de George", escreveu o músico na rede social Twitter.
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O produtor musical britânico George Martin, que transformou os Beatles em estrelas mundiais, morreu aos 90 anos, disse esta quarta-feira o baterista da banda Ringo Starr. "Deus abençoe George Martin. Paz e amor para Judy [a sua mulher] e para a sua família (...). Vamos sentir a falta de George", escreveu o músico na rede social Twitter.
"Podemos confirmar que Sir George Martin morreu serenamente em casa na noite de ontem [terça-feira]", escreveu em comunicado Adam Sharp, fundador da CA Management, representante do músico e produtor, sem especificar a causa da morte. "Numa carreira que atravessou sete décadas ele foi reconhecido globalmente como um dos mais criativos talentos na música e como um cavalheiro até ao fim."
Chamavam-lhe o quinto Beatle e a distinção era tão merecida quanto redutora. George Martin foi determinante ao traduzir os desejos da criatividade dos Beatles, ao dar resposta às suas dúvidas técnicas, ao colocar-se na música da banda não só enquanto produtor, mas também enquanto músico – é dele, por exemplo, o solo de piano, inspirado na música barroca, que ouvimos em In my life. Mais velho do que os membros dos Beatles, foi determinante ao aprovar a sua contratação pela Parlophone, em 1962, deixando-se seduzir pelo carisma e pela promessa de futuro que via nos quatro jovens de Liverpool, e não tanto pelos seus talentos musicais, que considerou limitados no final daquela primeira audição nos estúdios da EMI.
"Estavam sempre a perguntar-me por novos sons, a querer saber mais. Eu apresentei-lhes uma série de coisas que desconheciam, eles obrigaram-me a oferecer-lhes melhor material", dizia ao Ípsilon em 2006, aquando da edição de Love, o álbum em que, com a ajuda do fillho Giles, reorganizou, quase em modo remistura, toda a obra dos Beatles num fluxo contínuo de música. Concluiu o raciocínio desta forma: "Levaram-me ao limite o tempo todo mas, honestamente, não acho que me tenham ensinado nada."
Quando se deu o encontro que mudaria radicalmente o seu percurso, George Martin já era um técnico respeitado pelo seu trabalho, não só na EMI mas, antes disso, na BBC, onde entrara nos anos imediatamente seguintes ao final da Segunda Guerra Mundial. Músico de formação clássica (piano e oboé), era nesse departamento que o encontrávamos na BBC. Mas não só. Curioso pelo som, pelas possibilidades da sua manipulação que as novas tecnologias ofereciam e pelas vanguardas musicais, trabalhara com Peter Sellers, Peter Ustinov ou Spikey Milligan, assinando as colagens sonoras e outras experiências que se ouviam nos discos editados pelos célebres comediantes nos anos 1950.
Esses conhecimentos e esse aventureirismo seriam fundamentais na relação futura com os Beatles. Não lhe chamavam o quinto Beatle por acaso, ainda que George Martin, no momento em que os Fab Four transformavam radicalmente o panorama da música popular urbana (contribuindo para mudar o mundo além dele), não se apercebesse da dimensão do que construía com a banda. "Trabalhei com eles durante quase dez anos, mas num período tão intenso, em que estava tão incrivelmente ocupado, que nunca parei para fazer julgamentos de valor. Fiz apenas que achava correcto e esperei que funcionasse", disse-nos na entrevista supracitada. "Quarenta anos depois, quando já tenho o privilégio do distanciamento, olho novamente e comento para mim próprio: 'Não eram maus, pois não? Eram muito, muito bons'."
Após o fim dos Beatles, George Martin continuou a trabalhar como produtor, assinando não só a produção de álbuns a solo de Paul McCartney ou Ringo Starr, mas também de Jeff Beck, dos Cheap Trick, de Ella Fitzgerald, dos America, da Mahavishnu Orchestra, dos Ultravox e de bandas-sonoras (007 – Vive e Deixa Morrer¸interpretado por Paul McCartney, foi uma delas, o seu segundo crédito no universo James Bond, depois de, em 1964, ter produzido Goldfinger, composta por John Barry e cantada por Shirley Bassey).
Foi produtor da nova gravação de Candle in the wind, que Elton John registou em 1997 – um dos singles mais vendidos de sempre, na ressaca da morte de Diana de Gales –, numa altura em que já havia sido tornado Sir por Isabel II. No período pós-Beatles, actuou também ocasionalmente enquanto maestro. Em 1994 esteve no Coliseu de Lisboa e do Porto, dirigindo a Orquestra Clássica do Porto em dois concertos de celebração dos 50 anos da fundação da ONU.
George Martin deixa viúva Judy Lockhart-Smith, com quem casou em 1966, depois do divórcio com a primeira mulher, Sheena Chisolm, com que casara em 1968. Sobrevivem-lhe quatro filhos, Giles, Alexis, Gregory e Lucy.
“Não temos de tirar uma fotografia, podemos pintar”
Nascido a 3 de Janeiro de 1926, em Londres, George Martin era um filho da classe operária britânica. O pai Henry Martin, carpinteiro, e a mãe Beatrice Simpson Martin, empregada de limpeza, desejavam-lhe um futuro confortável enquanto funcionário público. Que o futuro seria diferente do desejado soube-o o adolescente George quando a Orquestra Sinfónica de Londres actuou na sua escola secundária, em Bromley. “Foi absolutamente mágico. Ao ouvir aqueles sons tão gloriosos, senti dificuldade em relacioná-los com os 90 homens e mulheres soprando os metais e as madeiras ou raspando as cordas com arcos de crina de cavalo. Não queria acreditar nos meus ouvidos”, cita-o o obituário do New York Times.
Piloto da Aviação Naval Americana durante a Segunda Guerra Mundial, sem nunca ter entrado em combate, mas animando os camaradas enquanto pianista de jazz, seria aceite na prestigiada Guildhall School of Music em 1947. Daí passaria para a BBC e da rádio pública britânica para a Parlophone. Enquanto director do pequeno selo da gigante EMI, cargo a que chegou o mais novo de sempre, com curtos 29 anos, revelaria o seu eclectismo ao trabalhar com nomes do jazz britânico como Johnny Dankworth ou Humphrey Lyttelton e cantoras como Shirley Bassey, ao produzir música de câmara e peças corais ou criando paisagens sonoras para os números cómicos dos supracitados Sellers, Ustinov ou Milligan. Moldado pela música da primeira metade do século XX, mostrou-se desde muito cedo em sintonia com o futuro que ajudaria a definir. Quando iniciou o seu percurso, a qualidade de um produtor media-se pela capacidade para reproduzir da forma mais fiel possível o som tocado pelos músicos em estúdio. Martin considerava-o uma visão limitadora da função. “Pensei, ‘ok, estamos todos a tirar fotografias do que acontece'. Mas não temos de tirar uma fotografia; podemos pintar. E isso levou-me a experimentar."
Alguns anos depois, encontrava-se perante os quatro miúdos de Liverpool com quem levaria ao limite esse desejo de pintura na música. A relação não começou da forma mais auspiciosa. Em 1962, os Beatles, apesar do sucesso regional, tinham sido recusados por todas as editoras discográficas contactadas. Seria a Parlophone a dar-lhes uma oportunidade. Da audição não resultou música que Martin considerasse particularmente promissora. “Tinham umas primeiras canções que eram lixo”, dizia ao Ípsilon em 2016. “O Love me do foi o melhor que conseguimos arranjar desse material inicial e, mesmo assim, não era grande canção." Ainda assim, não enviou Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Pete Best de volta ao Norte de Inglaterra sem bilhete de regresso. Mostrou-se reticente quanto aos talentos do baterista, o que acelerou a troca de Best por Ringo Starr e, em Setembro de 1962, os Beatles entravam nos estúdios da EMI para gravar o seu primeiro single, Love me do – Martin, receoso de se deparar com o pouco fiável Pete Best, contratara um experiente baterista de sessão, Andy White, e Ringo acabou reduzido a maracas e pandeireta, humilhação que, décadas depois, continuava a recordar ao produtor.
O que levara Martin a insistir com uma banda a que não reconhecia talento musical superlativo? Uma curiosa ausência de polidez sonora e as harmonias vocais, pouco habituais nas bandas rock da altura, além de um magnetismo irresistível e um sentido de humor deliciosamente desrespeitoso que logo cativou George Martin. No primeiro encontro em estúdio, o polido produtor de camisa branca e gravata preta, cabelo cuidadosamente penteado, cavalheiro de fleuma britânica imperturbável, perguntou à banda, cortês, se tudo estava montado como pretendiam ou se seria necessária alguma alteração. “Bem, para começar, há essa tua gravata”, disparou o então rock’n’roller vestido de negro George Harrison.
Inicialmente, o trabalho de George Martin era “fornecer ideias para o princípio e o fim das canções ou onde incluir os solos. Tudo muito simples”, como nos recordou em 2006. Os anos seguintes seriam, porém, de uma evolução vertiginosa, à medida que a música dos Beatles se complexificava e que George Martin começava não só a ser mais solicitado mas também a abrir os seus domínios – a régie, à época praticamente interdita aos músicos – à curiosidade crescente da banda.
Em 1962, sugeriu aos Beatles que acelerassem o ritmo de Please please me, composto por Lennon e McCartney à imagem das baladas de Roy Orbison, e lhe acrescentassem um solo de harmónica como introdução – “senhores, acabaram de gravar o vosso primeiro número um”, disse-lhes através do microfone da régie no final da sessão. Cinco anos depois, tudo havia mudado. Por sugestão dos Beatles ou instigada por eles, a música da banda passara a acolher secções de cordas, como a de Eleanor Rigby, modelada na música de Bernard Herrmann para o Psycho de Hitchcock, incluía a manipulação de fitas, a transformação do som original dos instrumentos, o acolhimento da vanguarda no coração da pop. “A complexidade de canções como I am the walrus ou as sequências do lado B de Abbey Road estavam a milhas da quase 'pastilha elástica' de 1962 e 1963. Em termos de produção, é uma vida. A minha produção foi evoluindo à medida que me tornava mais participante e maestro. Mas, muitas vezes, também eles eram maestros."
Com George Martin, o produtor no universo pop deixou de ser mero funcionário das editoras para se tornar num criativo, alguém que também contribuía decisivamente com a sua assinatura para o trabalho final. Não liderou sozinho o processo, mas foi, a par de outros visionários como Phil Spector, responsável por essa emancipação.
Enquanto supervisionava o trabalho nos estúdios de Abbey Road (produziu todos os álbuns dos Beatles, com excepção de Let It Be e de parte do White Album), mantinha actividade intensa com outros grupos, produzindo grupos beat como Gerry & The Pacemakers, uma cantora como Cilla Black ou o saxofonista Stan Getz. Durante dois terços do anos de 1963, discos produzidos por ele ocuparam o topo da tabela de vendas. Apesar disso, foi o trabalho com os Beatles que, naturalmente, lhe reservou um lugar na história. Uma relação simbiótica: “George Martin fez de nós o que somos no estúdio. Ajudou-nos a desenvolver uma linguagem com que conversar com outros músicos”, afirmou John Lennon em 1971.
No momento da sua morte, enquanto Sean Ono Lennon se declara devastado e o lendário Quincy Jones honrado pelo privilégio de o ter conhecido, enquanto chovem manifestações de pesar e homenagens de todos os quadrantes, do primeiro-ministro britânico David Cameron a David Simon, criador da série The Wire – “se todos nós pudéssemos ter um guia desta dimensão para os nossos trabalhos, o mundo talvez fizesse sentido”, disse –, é possível que o melhor resumo da sua importância e da importância do trabalho com os Beatles tenha chegado através de Mark Ronson. “Nunca deixaremos de viver no mundo que ajudaste a criar”, twitou o músico e produtor de nomes como Amy Winehouse, Adele, Nas ou Bruno Mars. A frase pode ser um cliché, mas no caso de George Martin não há hipérbole à vista. É um facto muito bem documentado. Na sua vida e, agora, para além dela.