Destroços de caça-minas da Grande Guerra revelam que inimigo estava às portas de Lisboa

A 26 de Julho de 1917, o navio Roberto Ivens afundou-se na barra do Tejo depois ?de ter embatido numa mina subaquática alemã. Os seus restos foram identificados no fundo do mar em Fevereiro, agora revelam-se imagens inéditas então obtidas.

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Das armas químicas aos tanques, a I Guerra Mundial (1914-1918) foi palco de várias inovações militares. E para cada nova forma de matar, houve uma resposta defensiva. Foi assim que nasceram os caça-minas: navios especializados em detectar e destruir as minas colocadas debaixo de água pelos submarinos. Portugal teve nove destes navios que procuravam minas alemãs nas barras dos portos de Lisboa e de Leixões. Mas a 26 de Julho de 1917, o caça-minas português Roberto Ivens chocou com uma mina na barra do rio Tejo e afundou-se. Quinze homens morreram.

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Das armas químicas aos tanques, a I Guerra Mundial (1914-1918) foi palco de várias inovações militares. E para cada nova forma de matar, houve uma resposta defensiva. Foi assim que nasceram os caça-minas: navios especializados em detectar e destruir as minas colocadas debaixo de água pelos submarinos. Portugal teve nove destes navios que procuravam minas alemãs nas barras dos portos de Lisboa e de Leixões. Mas a 26 de Julho de 1917, o caça-minas português Roberto Ivens chocou com uma mina na barra do rio Tejo e afundou-se. Quinze homens morreram.

Este foi um dos dois navios de guerra portugueses que foram afundados durante o conflito. Em Fevereiro, quase cem anos depois, os destroços do Roberto Ivens foram identificados perto do Bugio, na foz do Tejo, num local diferente daquele onde se pensava que estava. Os investigadores esperam agora que os vestígios permitam obter mais informação sobre esta actividade que a Marinha Portuguesa desempenhava ao largo da costa durante a guerra. Mas a identificação do navio permite já concluir que os submarinos alemães se aproximavam muito mais de Lisboa do que se imaginava.

“Quando se pensa na I Guerra Mundial, toda a gente pensa nas trincheiras. Mas foi pelo mar que a guerra veio até Portugal e esta é uma temática que não é muito conhecida. Estes destroços contam-nos mais sobre este tema”, diz ao PÚBLICO o investigador Paulo Costa, do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa. O historiador é o responsável científico pela investigação que contou com a Marinha Portuguesa, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e o Instituto Hidrográfico (IH).

Nesta quarta-feira, faz 100 anos que a Alemanha declarou guerra a Portugal, dias depois de um destacamento da Armada portuguesa ter subido a bordo dos navios alemães e austríacos que estavam no estuário do Tejo, então território neutro. A acção — que acabou com honras militares e a bandeira portuguesa içada nos navios — deveu-se à Inglaterra, aliada de Portugal, que pediu às autoridades portuguesas que aprisionassem os navios dos seus inimigos.

Foi assim que Portugal entrou oficialmente num conflito que matou 8,5 milhões dos cerca de 65 milhões de homens integrados nas forças militares das várias nações beligerantes, além de ter deixado feridos outros 21,18 milhões e de ter feito mais de 7,75 milhões de prisioneiros e desaparecidos em combate, de acordo com a enciclopédia Britannica. As forças militares portuguesas perderam 38 mil dos seus mais de 105 mil homens.

Aos que sobreviveram à guerra ou cresceram durante aqueles anos, chamaram-lhes mais tarde “geração perdida”.

“Medonha explosão”
Por cá, o desastre do navio foi notícia. “O caça-minas Roberto Ivens (...) andava no seu perigosíssimo trabalho de rocegagem [termo técnico para a procura de minas submarinas], quando às 13 horas do dia 26, encontrando-se a 12 milhas ao sul de Cascais, deu-se uma súbita explosão que o fez saltar, partido pelo meio, afundando-se em um minuto”, lê-se numa notícia da edição de 6 de Agosto de 1917 da revista semanal Ilustração Portugueza. “À medonha explosão apenas sobreviveram sete homens (...). As vítimas foram 15. No número d’estas contam-se o comandante do navio sr. Raul Alexandre Cascaes, 1º tenente; Narciso Bento Antonio, 1º sargento; Antonio Simões, sargento ajudante condutor de máquinas, e Jaime Constantino, 1º sargento condutor de máquinas.”

“Este episódio vem trazer alguma luz sobre o que foram as rotinas da Marinha Portuguesa na defesa da costa de Portugal”, diz Paulo Costa. “Sabe-se muito pouco sobre o dia-a-dia das patrulhas da Marinha.”

O uso de minas subaquáticas foi uma prática comum I Guerra Mundial. O engenho era colocado em profundidade para não ser visto e atingir o casco de navios de grande carga. As minas eram de metal e tinham espigões. Lá dentro, estavam os explosivos, que só eram accionados quando algo embatia nos espigões. “Estes espigões continham no interior uma ampola de vidro com ácido que, ao partir-se, deixava escorrer o ácido no seu interior e, através de uma placa de chumbo, activava um detonador eléctrico”, explica o historiador.

Por serem ocas, as minas flutuavam. Por isso, os submarinos lançavam-nas presas a um cabo que, por sua vez, estava preso a um peso que caia no leito do mar e mantinha as minas abaixo da superfície. O Roberto Ivens, um navio a vapor com 47,72 metros de comprimento, tinha um calado de cerca de três metros — a parte do casco que ficava debaixo de água — que bateu na mina.

“As minas eram colocadas à entrada dos portos”, explica Paulo Costa. “Alguma bibliografia refere que só entre a Escócia e a Noruega, em 1919, após o fim da guerra, se desminaram cerca de 21.000 minas. No Sul da Irlanda terão sido colocadas 400 minas só em 1917. O Canal da Mancha era praticamente não-navegável, de tantas minas que tinha.” Na zona do porto de Lisboa, terão sido colocadas cerca de 100 minas.

Quando Portugal entrou na guerra, o problema da desminagem já tinha sido abordado. A prática de rocega mais eficaz era feita com dois navios. Primeiro, prendia-se um cabo a cada um dos dois navios. Depois, os caça-minas navegavam paralelamente a uma certa distância, enquanto o cabo era arrastado dentro de água. Se este cabo transportado pelos navios apanhava o cabo que prendia a mina ao fundo do mar, esta era arrastada e acabava por ir para a superfície. Por fim, disparavam-se tiros contra a mina à superfície, que rebentava e deixava de ser uma ameaça.

Depressa se percebeu que os arrastões, os navios que usam redes de pesca, tinham já muito material apropriado para a desminagem. Por isso, as marinhas dos países requisitaram os arrastões às empresas pesqueiras e adaptaram-nos para a rocega.

Nos primeiros meses após a guerra começar, o Reino Unido já tinha 300 arrastões a fazer desminagem, no final da guerra eram mais de 1000. Portugal teve apenas nove. “O Reino Unido foi um dos países que nos forneceram equipamento para rocega de minas e junto de quem os oficiais portugueses tiveram instrução”, refere Paulo Costa, que consultou documentos nos Arquivos Nacionais britânicos, além de analisar os diários de bordo dos caça-minas que estão no Arquivo Central da Marinha Portuguesa e os diários de guerra dos submarinos alemães.

Antes de ser requisitado pela Marinha, a 19 de Abril de 1916, o Roberto Ivens (nome do famoso açoriano oficial da Marinha que se tornou explorador em África) chamava-se Lordelo e pertencia à Sociedade de Pescarias a Vapor, Lda. Naquele fatídico dia de Julho de 1917, o caça-minas fazia a rocega com o rebocador Bérrio. Quando a mina explodiu, foi o rebocador que retirou do mar os sete sobreviventes.

Um “luto que persiste”
“A mina rebentou debaixo do navio e a popa despedaçou-se”, diz Paulo Costa. “Passados 100 anos, não temos o navio, temos destroços.”

O historiador já mergulhou até aos destroços que estão a 36 metros de profundidade: “Quase tudo já colapsou. Apesar disso, subsiste uma secção reconhecível da proa até à caldeira, que é o elemento mais destacado. Existe ainda uma série de escotilhas do convés perfeitamente identificáveis, sustentadas numa estrutura de cavernas e vaus (vigas que sustentam o casco). A madeira do convés já desapareceu. Vê-se também um grande guincho.” As imagens divulgadas — e até agora inéditas — permitem identificar a proa do navio e a caldeira de metal resistente.

Há mais de dez anos que os mergulhadores suspeitavam de que aquele destroço correspondia ao Roberto Ivens. Mas nas cartas náuticas o destroço do caça-minas estava assinalado noutra posição.

“Pensava-se que o afundamento tinha ocorrido a 12 milhas náuticas [22 quilómetros] a sul de Cascais. Na realidade, o destroço encontra-se a sete milhas náuticas [13 quilómetros] a nordeste desse ponto [em direcção a Lisboa]”, explica Paulo Costa. Assim, a posição real do caça-minas é a menos de dez quilómetros do Bugio.

A partir de 2014, com o centenário da entrada de Portugal na I Guerra Mundial a aproximar-se, a investigação acelerou, conta o historiador. A identificação dos destroços foi possível graças a observações dos mergulhadores, que permitiram comparar a estrutura do navio com a respectiva planta de construção. E ainda graças a imagens obtidas do fundo do mar por um sonar de varrimento lateral, a bordo do navio Andrómeda, do IH, e por um sondador multifeixe, a bordo da lancha Atlanta, também do IH. Estas imagens permitiram ter uma perspectiva global dos destroços.

A identificação tem consequências para a história da Marinha durante a I Guerra Mundial. “Estamos a aperceber-nos de quais eram as rotinas de rocega de minas na barra do rio Tejo”, aponta Paulo Costa, acrescentando que essas rotinas não estão documentadas nem estudadas. Segundo o historiador, os diários de bordo dos caça-minas têm informação incompleta e pouco clara sobre os percursos destes navios. E não se sabe como se tomavam as decisões sobre o dia-a-dia dos navios: “Que percursos tinham de percorrer? Porquê? Quem decidia onde iam?”

Por outro lado, os destroços dão indicações sobre o trajecto do submarino alemão UC54 que colocou ali a mina. “A localização do destroço revela que os alemães estiveram muito mais próximo da entrada do porto de Lisboa do que se julgava”, sublinha. “Houve uma actividade intensa de submarinos alemães na nossa costa, principalmente contra a nossa marinha mercante. Várias embarcações de pesca foram afundadas por submarinos alemães.”

Não há qualquer intenção de retirar os destroços do fundo do mar. O que se pretende agora é fazer medições das estruturas mais importantes do navio, medir a profundidade a que se encontram essas estruturas e avaliar a posição relativa de objectos que venham a descobrir-se. Os destroços não estão enterrados e, à partida, não há necessidade de fazer uma escavação, salienta o historiador. Com esta informação, os cientistas vão tentar descortinar que equipamentos se usavam na rocega.

“Ainda estamos a estudar o que é que Portugal realmente possuía. Estes são os pormenores que a micro-história dá importância”, diz Paulo Costa. “Isto ajuda-nos a ter uma imagem mais completa das condições que Portugal tinha, ou não tinha, na I Guerra Mundial.”

Paulo Costa não está à espera de encontrar os restos mortais dos marinheiros: “O destroço é uma estrutura ‘aberta’, varrida por fortes correntes marinhas. Não é expectável que qualquer tipo de matéria orgânica se mantenha nestas condições durante 99 anos.” No entanto, a antropóloga Francisca Alves Cardoso, do Centro em Rede de Investigação em Antropologia da FCSH, está a postos para o caso de se localizarem restos mortais.

“A serem encontrados restos esqueletizados, o objectivo mais imediato seria identifica-los, montando um puzzle humano ósseo. Após a reconstrução, seria feita a análise dos ossos com o objectivo de chegar a uma identificação do indivíduo”, explica ao PÚBLICO a investigadora, especialista em osteologia humana. “No que toca ao espólio ser exposto e recuperado, serão seguidas as normas aplicáveis ao património arqueológico, salvaguardando o diálogo com a Marinha e com os familiares dos marinheiros que desapareceram — algo que considero necessário. Afinal, é um luto que persiste”, diz Francisca Alves Cardoso, referindo que o enterramento posterior das ossadas “seria uma opção digna”.

Na notícia de 1917 da revista Ilustração Portugueza sobressai o choque da “catástrofe”: “Não se esquecerá tão cedo a perda de tantas vidas pelos processos mais traiçoeiros e infames da guerra moderna.” Mas Paulo Costa explica que, “a longo prazo, a memória da guerra no mar acabou por ser ocupada pelo [afundamento do] Augusto Castilho”. A 14 de Outubro de 1918, este navio foi afundado por um submarino alemão depois de sair do porto do Funchal, na Madeira, para se dirigir a Ponta Delgada, em São Miguel, nos Açores. O Augusto Castilho escoltava o navio de transporte de passageiros San Miguel, salvando-o de ser destruído do ataque do submarino, o que deu contornos heróicos ao seu destino.

Mas agora a identificação dos destroços do Roberto Ivens é uma oportunidade para voltar a este acontecimento. “Faz parte da nossa história colectiva. Agora que se comemora a entrada de Portugal na I Guerra Mundial é mais do que oportuno lembrarmos este episódio”, sustenta Paulo Costa. A equipa já entrou em contacto com descendentes de familiares de alguns dos marinheiros mortos na explosão. “Já partilharam connosco uma série de documentos.”

Para o ano, os destroços do caça-minas passam a estar protegidos pela convenção de 2001 da UNESCO para o Património Cultural Subaquático, que determina a protecção do património marítimo com mais de 100 anos. Portugal é um dos signatários da convenção. “São locais com uma carga histórica muito forte”, diz Paulo Costa, recordando a sua visita ao caça-minas. “Apesar de estar muito deteriorado, é inevitável pensar na sequência de acontecimentos que originaram o afundamento e, por breves momentos, viajar no tempo.”