Do mentir às criancinhas
O beijo silencioso diz-lhe sem ela saber: Não tens de saber tudo já hoje, mas se me perguntares, eu vou-te responder... não te sei mentir, sou incompetente para esse tipo de “protecção”
Morto, muito morto mesmo, esmagadinho, passado a ferro, o raça do pombo, todo, inteirinho, do bico às penas do rabinho, muito espalmado no alcatrão, ainda fresco, do dia (senão os gatos nocturnos já tinham tratado dele), atropelado (a esta hora) por centenas de carros que nem dele se aperceberam, tripas à mostra mas sequinhas, cabeça e pernas indistintas, asas abertas numa última tentativa, penas ainda a tremelicar a cada carro que passa.
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Morto, muito morto mesmo, esmagadinho, passado a ferro, o raça do pombo, todo, inteirinho, do bico às penas do rabinho, muito espalmado no alcatrão, ainda fresco, do dia (senão os gatos nocturnos já tinham tratado dele), atropelado (a esta hora) por centenas de carros que nem dele se aperceberam, tripas à mostra mas sequinhas, cabeça e pernas indistintas, asas abertas numa última tentativa, penas ainda a tremelicar a cada carro que passa.
Indistinto aos carros mas muito óbvio para nós que esperamos à boca da passadeira, mão dada na volta do infantário, vejo de cima aquela cabeça baixar e virar na direcção do destroço, do cadáver, quase que ouço os olhos a focar, espero-lhe pela volta, pela inevitável volta.
Dedo a apontar: “O que é?!” tinha de ser muito parva para não perguntar. Tento o lacónico “É um pombo”, nem ela nem o homenzinho encarnado do semáforo me vão deixar escapar tão facilmente, mas arrisco na mesma. “O que é que tem o pombo?!” pimba, cá vamos nós.
A mãe ao meu lado na espera do sinal, com a respectiva cria pela arreata, controla-me pelo rabo do olho, faltavas cá tu pá! Semicerro-me: “O pombo está morto”, a mãezinha bufa indignada como se eu tivesse furado uma qualquer greve de que ninguém me avisou, a minha repete muito matter-of-factly: “Pois, o pombo está morto”.
Lida com isso cachopa diz-lhe a minha mão sobre a cabeça, não te tivemos, não nos aconteceste para te enchermos a cabeça de disparates: não há pai natal nem menino jesus nem popota nem mão invisível do mercado, não és “princesa” (que cá em casa somos republicanos) nem “feia” quando te portas mal (só má, isso de confundir o bom e o belo era para os gregos antigos), os pais às vezes discutem alto e odeiam-se momentaneamente (vem com o amor), a “Frozen” é só mais um estereótipo racista e sexista, não se pode confiar em padres nem na polícia nem nos gatos, 98% do que passa na televisão é conversa de adormecer meninos e as redes “sociais” são um veneno ainda pior, o capitalismo é o que se sabe, o socialismo “científico” não funciona e o anarquismo é uma complicação, ler muita filosofia endoidece-te e nenhuma faz-te morrer estúpida, a noção de “sucesso” socialmente aceite tem muito que se lhe diga, o Trump é mesmo capaz de ganhar as eleições na América e toda a gente que tu conheces vai eventualmente morrer.
Atravessamos finalmente a rua (obrigado homenzinho verde!) com aquela cabeça a integrar devagarinho a novidade, paro-nos, baixo-me até o rabo se me assentar nos calcanhares, seguro-lhe a cara redonda e linda com as minhas mãos desmesuradas. O beijo silencioso diz-lhe sem ela saber: Não tens de saber tudo já hoje, mas se me perguntares, eu vou-te responder... não te sei mentir, sou incompetente para esse tipo de “protecção”. Ela lá me percebe duma certa maneira.
Dá-me novamente a mão, seguimos caminho passeio afora, à frente das couves do Ferreira, recomeço eu “E era uma vez um moço chamado Teseu..” “Teseu?!!” ”Sim, Teseu!” ”Que nome tontinho!” ”Sim.. é um bocado... mas dizia eu, o Teseu uma vez chegou a um labirinto..” “Um quê?!” “Um labirinto!” “O que é um larbirinto?!” “Um larbirinto.. um la-bi-rin-to é.. é... o pai vai precisar dum papel e duma caneta”.