No centenário de Vergílio Ferreira e Mário Dionísio
Tive o privilégio de ser aluno no Liceu Camões destes dois importantes escritores, cujo centenário do nascimento passa este ano, a 26 de Janeiro e 16 de Julho, respectivamente.
Tive o privilégio de ser aluno no Liceu Camões destes dois importantes escritores, cujo centenário do nascimento passa este ano, a 26 de Janeiro e 16 de Julho, respectivamente.
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Tive o privilégio de ser aluno no Liceu Camões destes dois importantes escritores, cujo centenário do nascimento passa este ano, a 26 de Janeiro e 16 de Julho, respectivamente.
O primeiro como professor de Latim, o segundo ministrando um muito completo e qualificado curso de Literatura Portuguesa, nos então 6.º e 7.º anos, alínea E, que fechavam o curso dos liceus. Mário Dionísio precedendo Vergílio Ferreira, pois que regressei ao Liceu Camões no ano lectivo de 1961/62, depois de ter feito como interno o 2.º ciclo no Colégio João de Deus, no Monte Estoril, que sucedeu ao Bairro Escolar, fundado pelo pai de Mário Soares, dr. João Soares, onde Mário Dionísio também foi professor em 1943, segundo a sua biografia oficial. Tendo transitado para o Colégio Moderno mais tarde, onde por sinal fiz a instrução primária entre 1951/55, provavelmente cruzando-me com ele no ginásio, nas festas de aniversário do director, todos os anos em Novembro, onde confraternizavam alunos e professores, da primária aos últimos anos do liceu.
Foi por chumbar a Latim no exame do 7.º ano, no Verão de 1963, que tive de repetir essa disciplina e encontrei pela primeira vez Vergílio Ferreira como professor. Devo dizer que ia chumbando novamente no ano seguinte, não fora o exame oral ser efectuado por uma simpática professora que me tinha conhecido pessoalmente numas curtas férias passadas dois anos antes em Alfocheira, perto da Lousã, acompanhado de uns tios meus. Quando em 2013 fizemos o jantar dos 50 anos do fim do curso, nas próprias instalações do liceu, tive ocasião de lho dizer, do que já não se lembrava, mas tão-só dos agradáveis dias passados em Alfocheira. Corria pois o ano lectivo de 1963/64 quando conheci Vergílio Ferreira e pode imaginar-se facilmente o quão importante terá sido para um jovem de 18 anos ouvir duas vezes por semana, durante cerca de nove meses, alguém que dedicava a maior parte das aulas a falar do que o obcecava na altura: a literatura portuguesa e o papel que nela representava como escritor, no contexto político da época. Era também o tempo da entrada do cinema de Ingmar Bergman em Portugal e recordo-me bem das tentativas de interpretação do filme Sétimo Selo, sobre o qual o escritor fez uma excepção abrindo aos alunos a possibilidade de intervir. Mas o tema principal das aulas era a literatura e foi ali que ouvi falar pela primeira vez em Rimbaud e do facto de este ter completado a sua extensa obra poética aos 22 anos de idade, caso ímpar na vida de um escritor. E também dos três mais importantes escritores do século XX, segundo Vergílio, Proust, Kafka e Joyce. Mas, pela minha capacidade de interpretação psicológica de então, fiquei com a impressão de que este escritor/professor era um homem amargurado e sentia-se perseguido. Tinha havido o ataque do crítico Alexandre Pinheiro Torres sobre o seu prefácio ao romance Rumor Branco, do jovem Almeida Faria. E na polémica que se seguiu, no então Jornal de Letras e Artes, aquele acusou-o de levar o existencialismo das caves de Paris, personificado por Sartre e Camus, para a vila de Manteigas, na serra da Estrela, onde se desenrolava a acção do seu último romance, Estrela Polar. Vergílio Ferreira, sem dúvida um dos mais talentosos escritores da sua geração, vivia o período de distanciamento do neo-realismo e por isso era atacado por alguns dos seus pares. O princípio dos anos 1960 foi, como é sabido, de muita intensa actividade política contra a ditadura de Salazar, e no meio estudantil, em que eu estava inserido, havia uma grande desconfiança e até revolta contra quem atacava esse movimento, com todas as injustiças que isso pudesse implicar. Mas os movimentos da história são assim: demolidores para os que não seguem o Zeitgeist, o espírito do tempo. Um exemplo foi o dos colóquios sobre literatura organizados pela Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, em que Vergílio Ferreira e Alexandre Pinheiro Torres fizeram conferências com o intervalo de uma semana, com a sala apinhada de estudantes, em que Vergílio prosseguiu a sua cruzada contra a União Soviética, atacando indirectamente o PCP, que estava por detrás de muito do que se fazia contra o Governo de Salazar, incluindo o movimento estudantil. Depois de desenvolver as suas teses sobre o existencialismo e de brandir o livro de Alexander Soljenítsin Um Dia na Vida de Ivan Desinovich, como prova de que havia campos de concentração na União Soviética, o escritor viu-se confrontado com uma intervenção de José Luís Nunes, futuro dirigente do Partido Socialista, dizendo que os estudantes nas suas associações não tinham tempo para elucubrações existencialistas, pois estavam ocupados na defesa dos seus camaradas presos e expulsos das universidades. Confesso que não tive oportunidade de seguir com muita atenção a obra posterior de Vergílio Ferreira, para lá do excelente romance Aparição. A sua escrita era muitas vezes confusa e prolixa, principalmente nos ensaios, como é exemplo a introdução que faz ao Existencialismo É Um Humanismo, de Sartre, onde gasta 170 páginas, quando o texto do filósofo francês tem menos de 100, na edição da Presença de 1962. O mesmo acontece no estudo sobre Malraux. No entanto, penso que nos romances posteriores que consultei a sua escrita se depurou, simplificou e clarificou, tendo ganhado muito com isso.
A minha experiência como aluno de Mário Dionísio foi muito diferente. Com uma matéria muito vasta para dar em dois anos, desde os primeiros textos medievais portugueses, em prosa e em verso, de que se destacavam as cantigas de amor e amigo, passando pelos grandes cronistas do reino, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, Sá de Miranda, o Camões lírico, Fernão Mendes Pinto, Padre António Vieira, Luís António Verney, Herculano e Garrett, Camilo e Eça, quase que não entrávamos no século XX por falta de tempo, o que não dava ao professor ocasião para divagações. Mesmo assim, lembro-me de algumas referências literárias de Mário Dionísio à contemporaneidade, como a de Jorge de Sena, que começava quase sempre os seus escritos com alguns auto-elogios, a António José Saraiva, autor, com Óscar Lopes, da História da Literatura Portuguesa adoptada nas suas aulas, de discordância de algumas das suas teses, como a da comparação do teatro de Gil Vicente com o de Brecht. Mas também uma curta frase, em Outubro de 1962, aquando da crise dos mísseis em Cuba, se era desta vez que a ilha ia ser invadida pelos Estados Unidos. Mário Dionísio ensinava a literatura portuguesa e também uma iniciação à crítica literária (que entretanto desapareceu em Portugal, certamente por razões comerciais, pois assim os editores podem vender tudo o que quiserem, a maior parte sem qualquer valor literário). Foi certamente um dos professores que mais me marcaram, incluindo aqueles que conheci na Universidade Livre de Bruxelas, onde fiz a quase totalidade dos meus estudos universitários. Com o seu rigor e exigência, por vezes exacerbada, pôs aquela turma do 6.º e 7.º anos do Liceu Camões a escrever correctamente português, como afirmavam vários professores das outras disciplinas, entre os quais Baquero Moreno, que, entrado a meio do ano para substituir um colega, naquele tempo de prisão e até tortura de estudantes, com correrias à frente da polícia, confessou timidamente que acabava de chegar da corporação Polícia de Segurança Pública, onde ensinava!
Mais tarde, pouco tempo depois de 25 de Abril de 1974, telefonei para casa de Mário Dionísio dizendo-lhe que tinha um romance que gostaria de lhe mostrar. Quando cheguei, disse-me que na mesma cadeira tinha estado José Cardoso Pires com os seus primeiros escritos. Perguntou-me o que fazia. E eu, que trabalhava na General Motors desde que chegara, em fins de 1970, de uma comissão militar em Moçambique, tive de ouvir as suas queixas pelos problemas com o seu Vauxhall e explicar-lhe que a falta de peças para o seu carro se devia às longas greves nas fábricas em Inglaterra, (que tiveram o fim bem conhecido), mas que com a Opel não havia problemas.
O meu romance tinha uma longa epígrafe retirada do conto A Partida do Audaz Navegante, e ele disse: “Ah! Você também gosta do João Guimarães Rosa!” Mas o que guardo de mais importante desse reencontro tardio foi a sua confissão humilde, totalmente inesperada, de que só os grandes são capazes: “Não sou um grande escritor!” Pois não, respondi eu, em surdina.
Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia