Quatro milhões para matar ou a abertura do Irão
Eu tinha 21 anos quando Khomeini condenou Rushdie à morte, certamente Rushdie é um dos heróis do meu tempo de vida.
1. O Irão quer uma abertura. Em larga maioria votou por isso na semana passada, reforçando a linha pragmática do Presidente Hassan Rouhani. Ao assinar o acordo nuclear de 2015, Rouhani pôs fim a sanções económicas e a um isolamento de décadas, demarcando-se da era bélico-delirante de Ahmadinejad. Protagonizou assim o maior momento de abertura ao exterior desde a revolução islâmica de Khomeini, em 1979. Isso não garante reformas internas, num sistema em que a linha teocrática funciona como barreira, mas pode servir os reformistas, para já. É o que parece claro na adesão às urnas (60%) e no resultado (ultraconservadores derrotados). Durante a campanha eleitoral, a linha teocrática originou manchetes pelo mundo ao fazer subir o prémio pela cabeça de Salman Rushdie para quase quatro milhões de dólares. A ameaça contra Rushdie, lançada há 27 anos, continua a ser o símbolo negro da teocracia dos ayatollahs. E o que os iranianos disseram nas urnas, apesar de o aparelho ter feito tudo para bloquear candidatos reformistas, foi que não querem esse Irão. O desejo de abertura manifestou-se de forma tão clara que as anedotas já chegam às eleições nos Estados Unidos. Li uma na New Yorker em que o ministro iraniano dos Estrangeiros, Mohammad Javad Zarif, liga ao secretário de Estado norte-americano, John Kerry, tipo compincha tu-cá-tu-lá (depois de tanto tempo juntos nos meandros do acordo nuclear), e anuncia: “John, acabámos de derrotar a nossa linha dura. Avisa se quiseres conselhos sobre como vencer Donald Trump.” Ao contrário do humor, a modéstia não é uma tradição persa, eles nunca quiseram pouco. Na última década, o regime apropriou-se disso até ao extremo e à custa de meter a população numa camisa-de-forças, mas a vitalidade da cultura iraniana não murchou. Os eleitores terão decidido que votar era o menos mau dos sistemas, por contraponto ao boicote ou à revolta nas ruas. Têm boas razões para isso: os protestos iranianos de 2009 foram esmagados; as revoltas nos países vizinhos transformaram-se em mais opressão; o massacre da Síria continua mesmo ali ao lado (e o Governo do Irão contribuiu para essa caixa de Pandora, junto com os da Arábia Saudita, da Rússia, dos Estados Unidos, da União Europeia).
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1. O Irão quer uma abertura. Em larga maioria votou por isso na semana passada, reforçando a linha pragmática do Presidente Hassan Rouhani. Ao assinar o acordo nuclear de 2015, Rouhani pôs fim a sanções económicas e a um isolamento de décadas, demarcando-se da era bélico-delirante de Ahmadinejad. Protagonizou assim o maior momento de abertura ao exterior desde a revolução islâmica de Khomeini, em 1979. Isso não garante reformas internas, num sistema em que a linha teocrática funciona como barreira, mas pode servir os reformistas, para já. É o que parece claro na adesão às urnas (60%) e no resultado (ultraconservadores derrotados). Durante a campanha eleitoral, a linha teocrática originou manchetes pelo mundo ao fazer subir o prémio pela cabeça de Salman Rushdie para quase quatro milhões de dólares. A ameaça contra Rushdie, lançada há 27 anos, continua a ser o símbolo negro da teocracia dos ayatollahs. E o que os iranianos disseram nas urnas, apesar de o aparelho ter feito tudo para bloquear candidatos reformistas, foi que não querem esse Irão. O desejo de abertura manifestou-se de forma tão clara que as anedotas já chegam às eleições nos Estados Unidos. Li uma na New Yorker em que o ministro iraniano dos Estrangeiros, Mohammad Javad Zarif, liga ao secretário de Estado norte-americano, John Kerry, tipo compincha tu-cá-tu-lá (depois de tanto tempo juntos nos meandros do acordo nuclear), e anuncia: “John, acabámos de derrotar a nossa linha dura. Avisa se quiseres conselhos sobre como vencer Donald Trump.” Ao contrário do humor, a modéstia não é uma tradição persa, eles nunca quiseram pouco. Na última década, o regime apropriou-se disso até ao extremo e à custa de meter a população numa camisa-de-forças, mas a vitalidade da cultura iraniana não murchou. Os eleitores terão decidido que votar era o menos mau dos sistemas, por contraponto ao boicote ou à revolta nas ruas. Têm boas razões para isso: os protestos iranianos de 2009 foram esmagados; as revoltas nos países vizinhos transformaram-se em mais opressão; o massacre da Síria continua mesmo ali ao lado (e o Governo do Irão contribuiu para essa caixa de Pandora, junto com os da Arábia Saudita, da Rússia, dos Estados Unidos, da União Europeia).
2. Esta eleição era para o Parlamento e para a Assembleia de Peritos, que por sua vez irá eleger o próximo Líder Supremo (um posto vitalício: a Khomeini sucedeu o actual Ali Khamenei). Apesar dos candidatos afastados, a força dos reformistas excedeu as expectativas: “Épica da esperança: um dia inesquecível”, “Ponto de viragem na história da República Islâmica”, “A brisa da vitória”, escreveram os media pró-reformas. O Presidente Rouhani prometeu no Twitter: “Vamos abrir um novo capítulo baseado em talentos nacionais e oportunidades globais.” O reformista Rafsanjani, que fora humilhado em eleições anteriores e é dado como candidato a Líder Supremo, regressou em grande e celebrou via Instagram. Só um terço dos deputados eleitos já lá estava, então o Parlamento ficou cheio de caras novas, entre centristas, independentes, conservadores moderados e reformistas. Há jovens, e mais mulheres do que nunca concorreram. Os 30 lugares de Teerão foram todos para a Lista da Esperança, liderada pelo reformista Mohammed Reza Aref (pró-Presidente Rouhani). A perda da linha dura na capital foi tão grande que até o antigo porta-voz do Parlamento, um próximo do ayatollah Khamenei, ficou sem lugar no Parlamento. Mas, fora de Teerão, os ultraconservadores aguentaram-se melhor. De resto, controlam justiça, segurança, exército, parte dos serviços secretos e da economia. Os reformistas mais cépticos acham que este é um sistema minado, defendem o boicote das eleições e alertam para as pequenas mudanças que apenas perpetuam o sistema. Massoumeh Torfeh, uma pesquisadora da London School of Economics com larga experiência da região, comentou na Al-Jazira: “Apesar de tentativas sistemáticas para terem voz na política, a presença das mulheres tem sido mínima e, na maior das vezes, cosmética. Tornou-se quase a norma que nos momentos históricos o sistema de dominância masculina apele às mulheres para que desempenhem o seu 'dever islâmico' e participem nas eleições. Mas quando as eleições acabam, as exigências das mulheres são esquecidas.” Estamos a falar de um país onde uma mulher pode ser condenada à morte por apedrejamento. Tal como um artista pode ir parar à prisão ou ser condenado à morte por causa do seu trabalho. O documentarista Keywan Karimi foi recentemente condenado a um ano de cadeia e 223 chicotadas por denegrir valores religiosos. Se a ameaça contra Rushdie continua a fazer manchetes, é porque pode.
3. A fatwa não é circo, já custou vidas e parte da vida de Rushdie. Há 27 anos, o ayatollah Khomeini achou-se mandatado por Alá para ordenar aos muçulmanos que matassem um escritor que alegadamente ofendera o islão num romance chamado Os Versículos Satânicos. Não lhe bastou queimar o livro, o autor tinha de ser morto. Por causa disso, dezenas de pessoas foram mortas ou atacadas, entre tradutores e editores. E a Rushdie foram roubados muitos anos em que viveu como um foragido, de forma subterrânea, constantemente vigiado por polícias (ele conta isso na autobiografia Joseph Anton, seu pseudónimo de cativeiro). Entrevistei-o em Nova Iorque em 1998, nove anos depois da fatwa, quando o quotidiano voltava ao normal: chegar a ele ainda parecia um filme de espionagem. Rushdie é um grande criador com coragem artística, física e política, o que não é possível dizer de tanta gente assim no mundo. Os grandes que têm mais auto-estima do que paciência, como acontecerá a Rushdie, tendem a multiplicar detractores do supérfluo (não faltou quem viesse criticar-lhe o ego, isto, mais aquilo). Eu tinha 21 anos quando Khomeini condenou Rushdie à morte, certamente Rushdie é um dos heróis do meu tempo de vida.
4. Há muitos anos pedi um visto iraniano, creio que na véspera da guerra de 2003, quando já não havia voos para o Iraque e era preciso entrar por alguma das fronteiras terrestres. Foi recusado, provavelmente porque muita gente estava a usar essa fronteira, mas ir lá um dia não deixou de estar nos meus planos. Cruzei-me com o Irão nas bordas do Iraque, da Turquia, do Paquistão, sobretudo na parte ocidental do Afeganistão, onde o mundo persa mais do que encostar se sobrepõe: Herat é uma cidade a partir da qual se estabelecem relações milenares com lugares do Irão. Tenho a sensação de ter rondado esse mundo, que vai dos acménidas do século V a.C. a Marjane Satrapi ou ao cinema contemporâneo, sem nunca lá ter entrado. Também por tudo isso quero ver no acordo do nuclear o início de uma abertura. Mas enquanto os media da linha dura puderem anunciar, a cada Fevereiro, na véspera de aniversário da fatwa, que arranjaram mais 600 mil dólares para quem matar Rushdie, aumentando assim o bolo de milhões, todo o cepticismo será possível. Os ayatollahs dizem que a sentença de um ayatollah não é revogável. Na verdade, mantêm Rushdie como uma espécie de medida do poder ultraconservador. A ameaça contra Salman Rushdie continua a ser um espelho do duelo que se trava entre a linha dura e o resto do mundo.