Cânone literário lusófono: uma ideia que provoca resistências
No momento em que o Brasil admite excluir a literatura portuguesa dos programas escolares, o PÚBLICO ouviu reacções à proposta de Vítor Aguiar e Silva de se criar um cânone literário comum a ser ensinado em todos os países lusófonos.
Enquanto o Acordo Ortográfico (AO 90) continua a provocar discussões acesas, a criação de um cânone literário comum da língua portuguesa, visando garantir que autores fundamentais das várias literaturas sejam ensinados nas escolas de todos os países lusófonos, é um projecto que ainda pouco se debate fora dos departamentos universitários, mas que promete ser tão polémico como o AO 90.
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Enquanto o Acordo Ortográfico (AO 90) continua a provocar discussões acesas, a criação de um cânone literário comum da língua portuguesa, visando garantir que autores fundamentais das várias literaturas sejam ensinados nas escolas de todos os países lusófonos, é um projecto que ainda pouco se debate fora dos departamentos universitários, mas que promete ser tão polémico como o AO 90.
A ideia, publicamente lançada em Dezembro pelo teórico da literatura Vítor Aguiar e Silva na conferência inaugural do Congresso Língua Portuguesa: Uma Língua de Futuro, organizado pela Universidade de Coimbra, é a de que cada um dos países escolha os seus autores e obras fundamentais, e que da conjugação dessas escolhas resulte um “cânone literário escolar” que dê a conhecer a alunos de todo o mundo lusófono a especificidade das diferentes literaturas nacionais e a diversidade da própria língua.
Tendo em conta que o Ministério da Educação do Brasil se propõe agora eliminar a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa, retirando-a da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), ao mesmo tempo que novas leis têm vindo reforçar a presença das literaturas africanas nas escolas e universidades brasileiras, parece existir o risco de que, mesmo sem um cânone formal, esse esforço preconizado por Aguiar e Silva esteja de facto a fazer o seu caminho, mas deixando de fora a literatura da antiga potência colonizadora.
Aproveitando a presença de autores de quase todos os países lusófonos (só a Guiné-Bissau não esteve representada) no VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, que a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa promoveu em Fevereiro na Cidade da Praia, em Cabo Verde, o PÚBLICO pediu a um representante de cada país que indicasse quais os seus compatriotas que mereceriam integrar esse cânone comum destinado a alunos de quatro continentes. O resultado global revelou-se um tanto desequilibrado: houve quem se ficasse por um ou dois escritores e quem citasse quase 30.
O que de mais significativo haverá a retirar deste inquérito informalíssimo ainda será a naturalidade com que quase todos aceitaram o desafio. Não terá sido por acaso que a reacção mais cautelosa veio da angolana Ana Paula Tavares, que além de poetisa e ficcionista, é também uma académica, e está precisamente a trabalhar, no âmbito do Centro de Investigação (CLEPUL) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, num levantamento dos textos africanos já estudados no ensino secundário português, com o objectivo de propor novas obras.
Admitindo que a questão do cânone “não poderá ser evitada”, Ana Paula Tavares acha que ela “não foi suficientemente discutida” nos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), onde o debate “continua cheio da problemática dos nacionalismos, do ser-se ou não africano, e ainda se não chegou bem aos critérios da literatura”. Daí que lhe pareça prematuro lançar nomes, embora, como veremos adiante, tenha acabado por referir alguns.
Já Pires Laranjeira, professor de Literaturas Africanas da Universidade de Coimbra, acha mesmo que “não faz muito sentido esse projecto de Aguiar e Silva”, e observa que “estas ideias surgem sempre de Portugal ou do Brasil, e nunca dos países africanos”. Contestando a oportunidade de se tentar estabelecer um cânone em países que não dispõem ainda de uma história da literatura, Pires Laranjeira acredita, não obstante, que “se juntarmos 30 professores de literaturas africanas, vemos que há um conjunto de nomes consensuais”. Ele próprio distribui aos seus alunos uma lista das obras e autores que considera essenciais em cada uma das literaturas africanas lusófonas, escolhas que nem sempre coincidem com as opiniões que o PÚBLICO recolheu dos escritores desses países.
Torcer o nariz ao cânone
As discrepâncias mais óbvias talvez sejam as relativas a Cabo Verde. Laranjeira cita como incontornáveis os ficcionistas Baltasar Lopes (1907-1990) e Germano Almeida (n. 1945) e os poetas Corsino Fortes (1933-2015) e José Luís Tavares (n. 1967), acrescentando depois os romancistas Manuel Lopes (1907-2005) e Teixeira de Sousa (1919-2006), e ainda os poetas Jorge Barbosa (1902-1971), que Jorge de Sena inclui na segunda série das Líricas Portuguesas (1958), e Arménio Vieira (n. 1941). Este último venceu o prémio Camões em 2009, mas Laranjeira acha que Corsino Fortes, “um poeta tão importante como João Cabral de Melo Neto”, “merecia tê-lo recebido antes”.
O poeta José Luís Tavares, autor de Lisbon Blues, editado em Portugal pela Abysmo, é menos generoso. Argumentando que “a poesia cabo-verdiana é de longe superior à prosa”, indica apenas dois poetas: Arménio Vieira e um autor que Laranjeira não cita, João Vário (1937-2007), que Ramos Rosa já incluíra na quarta série das Líricas Portuguesas (1970), e de quem a Tinta-da-China editou recentemente a antologia Exemplos.
O autor escreveu poemas de temática cabo-verdiana sob o pseudónimo Timóteo Tio Tiofe, mas o essencial da sua obra lírica dialoga com a tradição literária universal, e em particular com o modernismo anglo-saxónico, e é um bom exemplo do esquecimento a que foram votados autores que, como ele, dispensaram as marcas do nacionalismo identitário e se afastaram desse “cantalutismo” militante que dominou muita da produção literária dos PALOP nos anos da guerra colonial e após as independências.
Tal como Laranjeira, também a professora brasileira Ida Alves, que coordena o Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana na Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, torce o nariz à ideia de cânone - “uma palavra que pesa, provocadora de muitos debates e radicalidades” -, e prefere perguntar “que vozes narrativas, poéticas, dramáticas continuam a soar, atravessando séculos, ou estão ao nosso lado, no aqui e agora, que vozes devem circular porque nos representam com o melhor da nossa cultura?”.
A investigadora critica a proposta do Ministério da Educação brasileiro, ainda em discussão, de retirar dos currículos a literatura portuguesa, mas lembra que, de um modo geral, as escolas brasileiras já só ensinavam os autores e obras necessários para se “compreender a constituição da literatura brasileira”. E interrogada sobre o desconhecimento da literatura portuguesa no Brasil observa que esta é também responsabilidade de Portugal, que, talvez por ali ter tomado como certa a presença da sua cultura, nunca se esforçou o suficiente para a divulgar.
Sem intenção de contribuir para qualquer cânone, Ida Alves acedeu a apontar alguns autores brasileiros que para si, enquanto leitora, são “uma descoberta permanente”: Gregório de Matos, António Vieira, Machado de Assis, Lima Barreto, Osvald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Haroldo de Campos, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar”.
Muitos deles coincidem com os nomes que o ficcionista brasileiro João Paulo Cuenca (n. 1978), autor de Descobri que Estava Morto (2015), referiu ao PÚBLICO enquanto tomava um café na Cidade da Praia. “Machado de Assis é incontornável, e Graciliano Ramos, e seria interessante ter nesse cânone o Lima Barreto”, ajuizou, propondo depois Clarice, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna (n.1941), e ainda “autores que escrevem sobre a realidade da periferia brasileira”, como o paulista Ferréz (n. 1975) ou Paulo Lins (1958), autor de Cidade de Deus (1997). Quanto aos poetas, além de Bandeira, Drummond e João Cabral, arrisca dois nomes mais recentes: Carlito Azevedo (n. 1961) e Angélica Freitas (n.1973).
Número excessivo
Dos autores que o PÚBLICO ouviu em Cabo Verde, Luís Cardoso era o que tinha a tarefa mais facilitada, dado o escasso número de autores timorenses que escrevem em português. Decidiu escolher apenas o poeta Francisco Borja da Costa, assassinado pelas forças indonésias em Dezembro de 1975, quando da invasão de Timor. “Em português, fazia poesia de intervenção, e em tétum uma poesia mais metafórica”, explica o ficcionista de A Última Morte do Coronel Santiago (2003).
Para a já referida Ana Paula Tavares, estas escolhas “têm de ter fundamentação literária sólida e apoiar-se em critérios estéticos”, algo que ainda está por fazer em vários países, incluindo Angola. Ainda assim, ao correr da conversa, foi-se perguntando se Luandino Vieira (n. 1935) ou Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) ainda seriam realmente lidos no seu país, como o são, diz, Pepetela ou Manuel Rui, e lamentou o esquecimento a que estão votados o ficcionista Arnaldo Santos (n. 1935) e os poetas Viriato da Cruz (1928-1973) e Mário António (1934-1989).
Uma lista que coincide bastante com a que Pires Laranjeira propõe, embora este considere Agostinho Neto (1922-1979) indispensável. Admitindo que a sua condição de colaborador da Fundação Agostinho Neto, em Luanda, possa torná-lo “suspeito”, defende que o romancista José Eduardo Agualusa não teve razão ao escrever num artigo que o primeiro presidente de Angola tinha sido “um poeta medíocre”. Laranjeira acha que “é preciso pôr aquela poesia no contexto” e não “tentar compará-la com a de Herberto Helder ou Eugénio de Andrade”. Se o argumento é razoável, a armadilha que aqui parece espreitar é a tentação de se consagrar o grau de entrosamento com o contexto histórico e político, e o impacto nele produzido, como critérios de avaliação estética.
Um risco que o poeta e jornalista moçambicano Luís Carlos Patraquim (n. 1953) não parece correr, a avaliar pela ecléctica lista de compatriotas que propõe para o cânone lusófono. Começa pelos poetas Rui de Noronha (1909-1943), José Craveirinha (1922-2003), primeiro africano a receber o prémio Camões, Noémia de Sousa (n. 1926), Rui Knopfli (1932-1997), Fonseca Amaral (1928-1992), e Eduardo White (1963-2014). Depois volta atrás para repescar o poeta e biólogo Orlando Mendes (1916-1990) e a poestisa Glória de Sant’Anna (1925-2009), e acrescenta ainda os ficcionistas Luís Bernardo Honwana (n. 1942), autor de Nós Matámos o Cão Tinhoso (1964), Mia Couto (n. 1955), Ungulani Ba Ka Khosa (n. 1957), Albino Magaia (1947-2010) e João Paulo Borges Coelho, vencedor do prémio LeYa com O Olho de Hertzog (2010).
Goretti Pina, uma jovem poetisa, romancista e estilista são-tomense radicada em Lisboa, começa por aconselhar três autoras: Alda Espírito Santo (1926-2010) - foi ministra da Educação e Cultura e deve-se-lhe o hino nacional são-tomense -, Olinda Beja (n. 1946) e a poetisa Conceição Lima (n. 1961), que só se estreou em livro em 2004, com O Útero da Casa. A este trio, Goretti Pina acrescenta Marcelo da Veiga (1892-1976), cuja poesia seria postumamente coligida em O Canto do Ossobó (1989), e Francisco José Tenreiro (1921-1963), que Sena também recolheu nas Líricas Portuguesas.
Da Guiné-Bissau temos apenas as indicações de Pires Laranjeira, que distingue quatro escritores nascidos nos anos 50: o romancista Abdulai Sila e os poetas Hélder Proença, Tony Tcheka e Odete Costa Semedo.
Se a todos os autores já referidos, somarmos os 28 escritores portugueses (de Almeida Garrett a Hélia Correia) que o romancista Miguel Real, a pedido do PÚBLICO e sublinhando que não lhe competia fazer tal escolha, apontou num pedaço de papel num hotel da Praia, chega-se a um número que é capaz de ser um bocadinho excessivo mesmo para o mais dedicado aluno do secundário de qualquer um dos países envolvidos.