Livros para comer a memória

Duas novas colecções ligadas à gastronomia mostram que há espaço para livros que não sejam apenas de receitas. Existe alguma investigação na área da história da alimentação, mas é preciso trazê-la das universidades até aos leitores. E há ainda muitas fontes por explorar.

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Rosário Félix

Não será o primeiro livro de receitas que nos lembramos de consultar quando estamos a preparar o jantar. E, no entanto, O Livro de Cozinha de Apício é todo virado para a prática. Se o folhearmos ao acaso podemos dar com uma receita de vinho de rosas, um molho para flamingo ou com a melhor forma de fazer tetas de porca recheadas com ouriços-do-mar.

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Não será o primeiro livro de receitas que nos lembramos de consultar quando estamos a preparar o jantar. E, no entanto, O Livro de Cozinha de Apício é todo virado para a prática. Se o folhearmos ao acaso podemos dar com uma receita de vinho de rosas, um molho para flamingo ou com a melhor forma de fazer tetas de porca recheadas com ouriços-do-mar.

A tendência será para procurar os elementos mais exóticos nesta obra que na edição que acaba de ser lançada pela Relógio d’Água, com introdução, tradução e comentários da especialista em cultura latina Inês de Ornellas e Castro, tem o título O Livro de Cozinha de Apício – um breviário do gosto imperial. Mas o trabalho aqui – o primeiro livro de uma nova colecção Artes de Mesa, dirigida por Ornellas e Castro – é tratar a gastronomia e a culinária como mais que um repositório de receitas que podemos, ou não, continuar a reproduzir ao longo do tempo.

Nas “Palavras Prévias” a autora faz uma distinção entre alimentação e culinária. Se a primeira tem a ver com “a satisfação das carências alimentares” a segunda é já um “conceito estético”. O gesto quotidiano de tratar da alimentação foi-se transformando “numa poética do gosto”. É disso que aqui se trata.

Encontramos Inês de Ornellas e Castro em casa de Ana Marques Pereira, uma das autoras (juntamente com Maria da Graça Pericão, especialista em história do livro) do segundo livro da colecção Artes de Mesa, um vocabulário gastronómico intitulado Do Comer e do Falar… Tudo Vai do Começar, com ilustrações de Rosário Félix. Estamos rodeadas de milhares de livros e objectos ligados à culinária e gastronomia reunidos ao longo do tempo por Ana Marques Pereira. E a conversa começa por aí. É fácil fazer-se investigação nesta área? Num mercado editorial dominado pelos livros de receitas, há lugar para uma colecção como esta?

“É preciso perceber que a alimentação é uma dimensão importantíssima da nossa existência”, afirma Inês Ornellas e Castro. “O acto de comer é um acto civilizacional, tem a ver com o enquadramento, a cultura, o espaço, a memória.” Veja-se o tratado de cozinha romana de Apício. “Está feito para percebermos não só as receitas mas toda a sociedade que viveu daquela forma. Comemos o que nos falta mas também o que simbolicamente está associado ao nosso universo. Há sempre um lado simbólico e ideológico ligado à alimentação. Num prato está uma civilização. Foi isso que eu quis apresentar às pessoas.”

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Ilustrações de Rosário Félix no livro Do Comer e do Falar... , o segundo publicado na colecção Artes de Mesa da Relógio D’Água, a seguir a O Livro de Cozinha de Apício
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Para isso, é preciso olhar para o prato mas também para tudo o que se passa à volta. “Quem come sentado ou reclinado tem uma forma de estar muito diferente”, frisa. A própria roupa pode ter um significado e a história do guardanapo é um bom exemplo. “Os guardanapos são muito importantes porque vêm proteger aquilo que antes era o fato de comer. Inicialmente eram usados para proteger o cochim do anfitrião e não a pessoa, mas depois o guardanapo vai mudar de lugar e passar a proteger os comensais. Os primeiros conhecidos eram uns pedacinhos de massa que se usavam assim [demonstra enrolando à volta dos dedos].”

O estudo dos objectos é, portanto, essencial. Ana Marques Pereira sabe disso bem, até pelos trabalhos que publicou anteriormente – Mesa Real, sobre a cozinha da dinastia de Bragança, A Manteiga em Portugal. Pequena História e Licores de Portugal – e por isso recolhe não apenas livros mas objectos cujas histórias vai partilhando com quem segue o seu blogue Garfadas Online criado em 2008.

Tudo por explorar
Médica de formação, tornou-se investigadora nesta área por paixão. E garante: “A vantagem de Portugal é que está tudo por explorar. Ao contrário do que acontece noutros países, onde há nas livrarias uma zona só para a história da alimentação, aqui não têm a noção da diferença entre a culinária e a gastronomia ou a história da alimentação. Chamam a tudo gastronomia.”

Há, na história da gastronomia em Portugal, muito poucas obras de referência. José Quitério no livro Bem Comer & Curiosidades resume a situação: “Foi serôdia e escassa a produção de livros impressos portugueses de cozinha. […] Até ao final do século XIX somente existem seis livros de culinária e mais dois afins (conservaria e confeitaria)”.

O primeiro a aparecer, em 1680, é a Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues – que vai ser agora reeditado na colecção da Relógio d’Água, numa versão revista e acrescentada de um trabalho de Maria da Graça Pericão e Isabel Faria que há muito se encontra esgotado.

“Este livro, que é o do primeiro cozinheiro português, não fica a dever nada ao de Lucas Rigaud [Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte de Cozinhar], que aparece depois e que desdenha dele”, afirma Graça Pericão. “O Domingos Rodrigues tinha a noção da sazonalidade dos alimentos, fazia menus para os vários meses do ano, tinha a preocupação de arranjar menus para a quaresma, quando não havia consumo de carne, os chamados ‘dias de magro’ e até substituía o leite por leite de amêndoas.”

Mas quando se procuram fontes nesta área não se pode ficar só pelo livro impresso, salienta Inês Ornellas e Castro. “Portugal e Espanha são dois países onde vigorou a circulação manuscrita até mais tarde. Há muito trabalho a ser feito a partir de manuscritos, alguns ligados aos conventos, mais aos masculinos do que aos femininos, porque as freiras encarregues de cozinhar não eram cultas.” Uma fonte importante são o “livros de segredos”, que tanto davam uma receita de um prato como ensinavam a fazer pó para pôr nas perucas ou mil e uma mezinhas.

Na altura em que investigou para o Mesa Real, Ana Marques Pereira mergulhou no universo dos livros da ucharia, a despensa da casa real. para ver tudo o que era encomendado. É uma fonte importantíssima mas com limitações. “Sabemos o que entra, não sabemos para onde vai cada um daqueles alimentos nem como é confeccionado. Só podemos concluir de acordo com as modas da época”.

E estas modas passam, entre muitas outras coisas, por outra fonte, muitas vezes esquecida: os médicos. “No século XII já havia médicos que orientavam cozinheiros e há livros de cozinha dos séculos XIII e XIV com conceitos dietéticos. As doenças eram corrigidas com alimentos que tinham as características opostas aos quatro humores. Se havia o predomínio de um humor frio e seco, o alimento tinha que ser o contrário.”

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Outra fonte pouco valorizada, lembra Inês de Ornellas e Castro, são os arquivos da polícia. “Há rondas policiais, há multas, vê-se o que era pago às finanças. As casas de pasto pagavam uma coisa, as tabernas, outra. E há as ocorrências da polícia ‘houve uma zaragata na taberna X’”. Ana Marques Pereira, que tem vindo a reunir informação sobre casas de pasto, socorre-se, para épocas mais próximas, da publicidade. “A partir de finais do século XVIII começam a surgir os primeiros anúncios, chamados ‘avisos’, ainda muito tímidos.”

Enquanto fazia as suas investigações, Ana Marques Pereira foi reunindo muito vocabulário ligado ao tema. “Mesmo quando trabalhava 40 horas por semana como médica, todos os meus tempos livres eram dedicados à investigação. Qualquer assunto é um ponto de partida para o desenvolver. Fui adquirindo todos estes livros porque não tinha muito tempo para passar em bibliotecas. E como encontrava palavras de que não sabia o significado comecei a fazer um dicionário com termos antigos.”

Um dia cruzou-se com Maria da Graça Pericão, que trabalhou como bibliotecária na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e que também estava a fazer um dicionário de termos de culinária e decidiram juntar os dois ficheiros. O resultado – um trabalho sempre em aberto, como qualquer vocabulário – é o agora editado Do Comer e do Falar… “Talvez seja a primeira vez que se reuniu num só volume uma pesquisa muito abrangente dos termos usados no dia-a-dia, no passado e nas regiões mais esquecidas do nosso país”, diz Graça Pericão.

Uma das preocupações foi mostrar a evolução das palavras ao longo dos tempos e os diferentes significados que foram tendo. As autoras quiseram também incluir termos actuais – “para que quem vai ao restaurante e se confronta com pratos novos saiba o que significa”, explica Ana Marques Pereira – e regionalismos. Estes, diz Graça Pericão, são hoje importantes “não só para a gastronomia mas para o estudo da língua”. Por isso, acredita que este vocabulário gastronómico “pode servir como ferramenta para enriquecer outras áreas da língua”.

Há, contudo, ainda um enorme trabalho de pesquisa a fazer nos diferentes arquivos e colecções e que exije transdisciplinaridade. Foi para isso que nasceu o Projecto Diaita – Património Alimentar da Lusofonia, do qual fazem parte as três autoras e mais de 40 outros investigadores. Será daí (mas não exclusivamente) que sairão mais livros da colecção Artes de Mesa.

“Interessa-nos o que se come”, explica Inês de Ornellas e Castro, “mas também os espaços de sociabilidade, o advento dos restaurantes, o que é que eles significaram como espaços de tertúlia, porque é que os bifes se desenvolveram nos cafés, como se põe uma mesa e porquê, como é que evoluiu o modo de estar à mesa, qual o papel dos menus, como é o servir à francesa e o que isso diz do nosso modo de conviver”. Para já, têm uma colaboração com o Brasil, mas a ideia é alargar os estudos a todo o espaço lusófono. “O nosso sonho”, conclui, “é fazer uma história da alimentação em Portugal”.

Virgílio Gomes, ele próprio autor de livros de gastronomia e história da alimentação como Doces da Nossa Vida e Tratado do Petisco, partilha da convicção de que há lugar no mercado português para estas obras, “que vão para além de simples receitas e que constituem a memória de hábitos instalados por gerações”. Por isso está a coordenar outra colecção de gastronomia, esta na editora Âncora. Saíram, até agora, dois livros, ambos sobre tradições transmontanas. O primeiro foi Comidas Conversadas de António Manuel Monteiro, que identifica elementos e produtos tradicionais que ajudam a caracterizar a cozinha transmontana; o segundo Memórias da Cozinha Transmontana de Adozinda Marcelino e Acúrcio Martins, é um conjunto de receitas de origem do nordeste transmontano mas ilustradas com textos das tradições a elas associadas.

“O mercado está saturado de livros de receitas com óptimas fotos que depois pouca gente executa”, diz Virgílio Gomes. “Há uma moda de livros de cozinha atractivos e de conteúdos duvidosos ou com pouca informação. Por isso, apesar de a procura não ser ainda muito forte, achamos que vale a pena dedicarmo-nos a livros de conteúdos que vão para além das receitas.”

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Rosário Félix

“Que me deite à lembrança – em Torre de Moncorvo, também em Freixo de Espada à Cinta e por aquelas bandas mais acercadas ao Douro -, entre outros enchouriçados, sempre se arramavam as lareiras de alheiras, tabafeias e de vez em quando com um bom vareio de vilões”. Assim começam, num texto inspirado pela alheira de Mirandela, as Comidas Conversadas de António Manuel Monteiro, para depois continuarem pelos cuscos de Vinhais, os rabos de polvo das bruxas, o peixe das tréguas, o elogio ao castanheiro ou a sexualidade dos vinhos, e terminarem num glossário, que isto de regionalismos transmontanos exige explicação (prova, aliás, da importância de haver dicionários e vocabulários que fixem os muitos regionalismos de todo o país).

Estão previstos para esta colecção Lisboa – Gastronomia de uma Cidade, adaptação a livro da tese de Pedro Cruz Gomes no Mestrado em Ciências Gastronómicas, um trabalho importante porque, sublinha Virgílio Gomes, “escreve-se pouco sobre Lisboa e a origem e diversidade do que se poderia chamar a gastronomia lisboeta”. E ainda uma reedição comentada de A Arte do Cozinheiro e do Copeiro, do Visconde de Vilarinho de S. Romão (1841).

Existem “estudos interessantes” e “gente interessada em escrever sobre estes temas, mas por vezes com poucos meios para a investigação”, diz Virgílio Gomes. “Há trabalho monográfico muito bom em Portugal”, acrescenta Inês de Ornellas e Castro, “pessoas que estudaram a Idade Média ou a Idade Moderna ou a doçaria conventual ou trabalharam só sobre o sal ou a comida da corte. Mas é feito em moldes muito académicos Nós esperamos vir a colmatar essa lacuna”. O facto é que, diz a autora, “apreciamos melhor um prato quando conhecemos a sua história”. Porque, no fundo, “também comemos a memória”.