Ainda sobre a vigência do Acordo Ortográfico
Se alguns consideram que a vigência do Acordo em Portugal é inconstitucional (no Brasil esta questão não se coloca), cabe aos defensores dessa tese provocar o exame da matéria nas instâncias competentes.
Peço licença ao leitor para voltar ao tema do AOLP em tão pouco tempo desde o meu artigo anterior “O Brasil e o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, publicado em 9 de fevereiro. E faço-o para tentar dirimir falsa polêmica e confirmar ao público português que o AOLP está em vigor no Brasil desde 2009 e é plenamente aplicado desde 1.º de janeiro de 2016.
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Peço licença ao leitor para voltar ao tema do AOLP em tão pouco tempo desde o meu artigo anterior “O Brasil e o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, publicado em 9 de fevereiro. E faço-o para tentar dirimir falsa polêmica e confirmar ao público português que o AOLP está em vigor no Brasil desde 2009 e é plenamente aplicado desde 1.º de janeiro de 2016.
A referida polêmica foi levantada em artigo publicado neste jornal, em 20 de fevereiro, segundo o qual o AOLP não estaria em vigência de jure em nenhum país. Nada mais falso. O artigo, certamente produto de jurista de escol e lógico de elevada consideração, atirou-se, com o espírito de um geômetra, a uma prova abstrata do que afirma, elidindo do raciocínio argumentos não claros a outros comentaristas e mesmo contestados por muitos. Evitou também interconexões entre o direito e a política, só compreensíveis ao esprit de finesse, que percebe o que nem sempre à razão instrumental se mostra. O caso parece mais grave porque, partindo de uma abstração lógico-jurídica, concluiu contra a realidade.
O artigo se emaranha, data venia, num hocus pocus jurídico sobre o que vem antes ou depois, sobre o que valida ou invalida o quê. E tais abstrações aparecem como realidades empíricas. Se abrirmos um jornal no Brasil lá se verão aplicadas as regras do AOLP, assim como nos livros, nas emissões televisivas etc. As novas regras são também exigidas nos exames escolares em todos níveis. O quod erat demonstrandum, caro aos geômetras, não se aplica, por conseguinte, ao fim pretendido por aqueles interessados em negar a validade do Acordo.
Ao tratarmos desse assunto, não escapa o fato curioso de que no Brasil ensinamos às crianças que falamos o português, a mesma língua de Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe. Há , contudo, quem nos queira convencer de que falamos o “brasileiro”, como se fosse outro idioma e não variação da mesma língua. Essa conversão do português do Brasil em “brasileiro” ocorre apesar do expressivo valor que todos conferimos à lusofonia e da constante menção ao português como a quarta língua mais falada do mundo, com cerca de 250 milhões de falantes.
Embora a maioria inequívoca dos falantes pratique a “variação brasileira”, o Brasil considera que a língua, entendida como patrimônio comum de todos os países de expressão oficial portuguesa, merece gestão multilateral e consensual. Nesse sentido, nunca buscou impor sua variação nacional, antes acolheu com entusiasmo a iniciativa de conferir ao idioma maior grau de unidade ortográfica, pela via do entendimento adequado e negociado no âmbito da CPLP. O resultado possível dessa iniciativa conjunta - com o decisivo concurso do Governo de Portugal e da Academia de Ciências de Lisboa – é o AOLP. Ressalte-se que o Acordo e seus dois Protocolos Modificativos contaram com a livre adesão de todos os Estados membros da CPLP, aos quais Timor-Leste aderiu posteriormente.
Abordando especificamente a questão da vigência do AOLP, é importante lembrar que a tese da insubsistência do Acordo, com base em argumentos de cunho jurídico, não é nova. Grosso modo, essa tese afirma que, para vigorar, o AOLP tem de ser ratificado por todos os Estados que o firmaram em 1990 (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe). Adicionalmente, defende ainda que a entrada em vigor do Acordo ou sua plena aplicação requer a existência de um vocabulário ortográfico comum.
Como se sabe, o texto original do AOLP previa, no artigo 3.º, sua entrada em vigor “em 1.º de janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados”. Em 1998, o Portocolo Modificativo ao AOLP, firmado pelos mesmos sete países, alterou a redação daquele artigo, eliminando referência à data para entrada em vigor do Acordo, mas mantendo a necessidade de ratificação por todos os Estados. Em 2004, no entanto, os mesmos países acordaram o Segundo Protocolo Modificativo, alterando, mais uma vez, a redação de seu artigo 3.º, que passou a ser lido como se segue: “o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto à República Portuguesa”.
Essa alteração, feita de livre vontade por todos Estados, não contraria as normas do direito internacional. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelece que “um tratado entra em vigor nos termos e na data nele previstos ou acordados pelos Estados que tenham participado na negociação” (art. 24º, 1). Apenas “na falta de tais disposições ou acordo, um tratado entra em vigor logo que o consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação” (art. 24º, 2). Assim, ao estipular que o AOLP entraria em vigor quando três Estados o ratificassem (e apenas nesses Estados), o Segundo Protocolo Modificativo não inova, adotando critério amplamente utilizado em atos internacionais, multilaterais ou regionais, e que se tornou prática corrente nos acordos da CPLP desde 2002.
Quanto à suposta necessidade de elaboração prévia de um vocabulário ortográfico comum como condição para vigência ou plena aplicação do AOLP, trata-se de interpretação que ultrapassa o seu texto original (1990), bem como sua redação alterada pelo Protocolo Modificativo (1998). Como se recorda, o texto do AOLP determinava que “os Estados signatários tomarão as providências necessárias com vista à elaboração, até 1.º de janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas” (art. 2.º). O Protocolo Modificativo de 1998 altera a redação desse artigo, eliminando a referência ao prazo para a elaboração do vocabulário ortográfico comum.
Da passagem acima transcrita, não se pode inferir que a elaboração de vocabulário seja condição necessária para a entrada em vigor do AOLP. No texto do Acordo não há qualquer formulação que subordine ou condicione sua vigência à existência prévia de um vocabulário ortográfico comum. A inexistência dessa alegada “condição necessária” torna-se patente a uma leitura integral do artigo acima citado. Ao atentar-se à restrição final – “vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa (…), no que se refere às terminologias científicas e técnicas” (grifo meu) –, percebe-se tratar de referência a léxico técnico e científico, com vistas à uniformização dessas terminologias – e não ao léxico comum da língua portuguesa. Ora, a vigência da nova ortografia da língua não poderia estar condicionada à elaboração de um léxico das “terminologias científicas e técnicas”.
No entanto, no entendimento de que a elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa seria instrumento desejável para a aplicação do AOLP, a CPLP incumbiu o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) de criar Vocabulário Ortográfico Comum (VOC), que integrasse os Vocabulários Ortográficos Nacionais (VON) dos Estados signatários do AOLP. A primeira versão do VOC foi apresentada na Cimeira da CPLP realizada em Díli, em julho de 2014. Idealmente, o VOC integrará os vocabulários ortográficos nacionais de todos os Estados signatários.
A primeira etapa de sua elaboração consistiu na fusão dos vocabulários ortográficos nacionais do Brasil e de Portugal, já adaptados ao AOLP (o Brasil foi o primeiro a fazê-lo, em 2009, por meio do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP – elaborado pela Academia Brasileira de Letras). Posteriormente, sob coordenação do IILP, especialistas têm-se dedicado à elaboração dos VONs dos demais países, seguindo metodologia comum. Já foram concluídos e integrados no vocabulário comum os vocabulários nacionais de Moçambique e Timor-Leste. Encontram-se em fase final de confecção os vocabulários de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Portanto, a versão atualmente disponível (http://voc.cplp.org/) integra os vocabulários nacionais já finalizados (Brasil, Portugal, Timor-Leste e Moçambique).
Conforme tive a ocasião de afirmar em meu artigo anterior e no começo deste, o AOLP está em vigor no Brasil desde 2009 e é plenamente aplicado desde 1.º de janeiro de 2016. Para tanto, cumpriram-se todos os ritos necessários: o Acordo e seus dois Protocolos Modificativos foram ratificados pelo Congresso Nacional e promulgados por decretos do Executivo. Sua incorporação ao direito positivo brasileiro concluiu-se em 2008, por meio da publicação dos Decretos nº 6.583, 6.584 e 6.585, de 29 de setembro.
A plena aplicação do AOLP no Brasil, como esperado, não passou despercebida pelos meios de comunicação portugueses, inclusive por este jornal, cuja edição de 1.º de janeiro passado trouxe o artigo intitulado “Sobem para 215 milhões os falantes de português a usar o Acordo Ortográfico”. Nele informa-se sobre a vigência do Acordo não apenas no Brasil, como também em Portugal e Cabo Verde.
Se alguns consideram que a vigência do Acordo em Portugal é inconstitucional (no Brasil esta questão não se coloca), cabe aos defensores dessa tese provocar o exame da matéria nas instâncias competentes. Até decisão em contrário, vale o dito cunhado por Guimarães Rosa: “enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães”. E uma opinião, por douta que seja, segue sendo mera opinião.
Embaixador do Brasil