Este The Walking Dead vai lembrar-se do que escolherem
A estreia da minissérie composta por três episódios revela uma protagonista fortíssima que não é devidamente suportada pelo resto do elenco nem pelo arco narrativo.
Aqui a morte está por todo o lado, como se Caronte precisasse de uma frota. Perdeu-se a urgência de a esconder porque quem morre pode não morrer mesmo: deambula a seu próprio ritmo feito zombie, vai morrendo. Em The Walking Dead está-se muitas vezes por pouco em destinos que parecem traçados por quem não acredita neles.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Aqui a morte está por todo o lado, como se Caronte precisasse de uma frota. Perdeu-se a urgência de a esconder porque quem morre pode não morrer mesmo: deambula a seu próprio ritmo feito zombie, vai morrendo. Em The Walking Dead está-se muitas vezes por pouco em destinos que parecem traçados por quem não acredita neles.
Depois de assinar duas temporadas memoráveis, a produtora Telltale estreia The Walking Dead: Michonne, minissérie composta por três episódios que serve de interlúdio, tal como 400 Days serviu. O primeiro episódio, In Too Deep, é naturalmente marcado pelo surgimento de novas personagens, pela sua apresentação aos jogadores, por alguns eventos tensos que mostram quem é quem e um vislumbre de quem serão alguns.
O aceitável nesta versão da humanidade tem regras próprias por ajuste à constante verificação de quem sobrevive. Michonne, a protagonista, é chamada a liderar os avanços narrativos feitos ao longo de quase 90 minutos, afirmando-se como o que será recordado quando a memória for lavada nos dias seguintes.
Quando todos os flancos tentam reclamar vidas, qualquer coração que ainda bata pode ser considerado pertença de guerreiro. Todavia, descrever Michonne como tal é redutor. Não só abre futuro à lei do metal que empunha, como tem que lidar com os constantes assaltos do passado, do que ficou para trás, conjugando o verbo sobreviver em dois tempos.
“Deixei tantas pessoas que amava para trás. Tantas que quase não me lembro de todas. Mas há duas — apenas duas — que nunca esquecerei”, diz Michonne logo no início do episódio. É uma personagem sombria, torturada, no limite do funcional, alicerçada por linhas de diálogo curtas e directas ao que é solicitado, sorriso a pedido de alvará, e nada parece fora de sítio na edificação e mostra da personagem, pois aquelas duas pessoas que nunca esquecerá vão sendo lembradas durante o episódio, deixando o jogador fazer parte daqueles rombos emocionais.
Contudo, parece que desenvolver a protagonista retirou espaço considerável de afirmação a quase todos com que se cruza. Michonne é memorável por mérito próprio, mas também porque contracena com personagens pelas quais é nutrida pouca simpatia e preocupação. Entram e saem de cena consoante a vontade dos argumentistas, raramente conseguindo o investimento emocional de quem as conhece pela primeira e última vez.
O arco narrativo de In Too Deep abre com uma situação de desespero absoluto e prossegue com Michonne a bordo do The Companion, um barco que procura sobreviventes e mantimentos. De gancho previsível, num desses rastreios por alguém que ainda viva, o rádio ecoa o balbuciar de algumas palavras, o suficiente para valer a saída do barco e procurar mais de perto. A viagem para terra corre mal — a barcaça de transporte temporário é virada perto dos escolhos.
Esta busca é o ponto de partida para a introdução de personagens além das que conhecemos no já mencionado barco de resgate e para aprofundar a relação de Michonne com Pete. O molde é um terreno já calcorreado por todos que terminaram os episódios anteriores. E, em terra, o rumo não muda muito, ou seja, aos ataques dos zombies junta-se a descoberta de outras personagens, outros grupos, outras oportunidades de trocar texto, fazer escolhas que serão recordadas, cair em situações que têm o seu quê de tensão, especialmente uma cena com um interrogatório improvisado que se assume como um dos pontos altos.
Michonne é confrontada directamente com escolhas em que pode ser verdadeira ou inventar um passado recente. É aqui que a qualidade da escrita que valeu imensurável reconhecimento à produtora se faz notar, raspando o osso às emoções, fervendo o sangue de quem joga à laia de escolhas que podem mostrar o quão volátil a verdade é nestas circunstâncias, ou melhor, o quão volátil a verdade pode soar nestas circunstâncias.
E, seguindo a tradição da casa californiana, os últimos momentos do episódio contêm avanços que espevitam a curiosidade e a vontade de querer continuar a seguir quem sobrevive a In Too Deep. Depois de Michonne chegar a Monroe, parece que quem lá habita, especialmente Norma, irmã de Randall, está longe de mostrar os seus trunfos, algo que é executado com o calculismo de quem desenvolve este universo desde 2012, ano em que foi publicado o primeiro episódio da tocante história protagonizada pela dupla Clementine/Lee.
Também seguindo tradições, é apresentada a jogabilidade que, como sempre, recorre a Quick Time Events, momentos em que temos que reproduzir as instruções que vão aparecendo no ecrã: pressionar os botões correctos, deslizar o analógico. São seguimentos que estão associados aos ataques dos zombies e que resultam nos momentos mais violentos. In Too Deep tem, contudo, uma sequência em que temos que corresponder com os dedos a vários botões seguidos, algo que é usado apenas uma vez e que poderá eventualmente abrir caminho à instalação de uma nuance na jogabilidade.
Na PlayStation 4, consola onde foi testado o jogo, tal como já tinha acontecido com outros títulos da produtora, somos infelizmente brindados com alguns solavancos na framerate, algo que, contudo, não se intromete com o cômputo geral da obra. Os cenários e a modelagem das personagens recorrem ao estilo cel shading, comungando com os episódios anteriores e piscando o olho ao material de origem.
Como se as páginas dos comics fossem arrancadas e ganhassem movimento, texturas sólidas delineadas por traços livres, a desconcertante constatação que parece ser um desenho a mostrar-nos tamanha violência, rostos cobertos de sangue dialogam, crânios divididos, corpos trespassados, zombies, sim, mas também seres como todos nós. E claro, Michonne de bandana, Michonne de pendente, Michonne de expressões faciais cerradas, imperturbáveis, Michonne.
Uma parte significativa deste carisma e desta pose deve-se ao trabalho da actriz Samira Wiley, que provavelmente reconhecerão de Orange is the New Black, onde interpreta Poussey Washington. É uma escolha acertadíssima de casting, tocando inequivocamente nos vários tons a que a situação da personagem obriga. Não só emulsiona o desespero como também o tom autoritário que assume quase sempre que está no ecrã. Claro que a qualidade da escrita colocada ao seu serviço ajuda, mas é uma entrega que não nos faz descrer que aquela personalidade foi moldada pelo que perdeu e pela indelével constatação de que aquela realidade é um jogo a perder.
A estreia de The Walking Dead: Michonne vale pela apresentação da sua protagonista, por podermos fazer parte daquele cerrar de dentes. Poderá assumir-se como algo valioso se os restantes dois episódios condensarem avanços e desfechos que o justifiquem. No final do primeiro episódio somos convidados a investir o nosso dinheiro e as nossas emoções num salto sem termos a certeza onde vamos aterrar.