Suspeito (e possível sucessor de Eduardo dos Santos)
1. É um caso duplamente inédito: um procurador português está em prisão preventiva por suspeita de ter sido corrompido; o vice-presidente angolano foi indiciado como suspeito de o ter corrompido. A justiça portuguesa investiga o caso há ano e meio, aparentemente em força: “11 procuradores, oito juízes e 60 inspectores da PJ” participaram na operação que resultou na detenção do procurador Orlando Figueira, terça-feira. O vice-presidente Manuel Vicente estava em Kinshasa, onde quarta e quinta tinha uma conferência sobre investimentos privados. Fiquei a saber dessa agenda no orgão do regime, Jornal de Angola, que até ao fecho desta crónica (sexta-feira) continuava a ignorar a suspeita em torno do potencial sucessor de José Eduardo dos Santos.
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1. É um caso duplamente inédito: um procurador português está em prisão preventiva por suspeita de ter sido corrompido; o vice-presidente angolano foi indiciado como suspeito de o ter corrompido. A justiça portuguesa investiga o caso há ano e meio, aparentemente em força: “11 procuradores, oito juízes e 60 inspectores da PJ” participaram na operação que resultou na detenção do procurador Orlando Figueira, terça-feira. O vice-presidente Manuel Vicente estava em Kinshasa, onde quarta e quinta tinha uma conferência sobre investimentos privados. Fiquei a saber dessa agenda no orgão do regime, Jornal de Angola, que até ao fecho desta crónica (sexta-feira) continuava a ignorar a suspeita em torno do potencial sucessor de José Eduardo dos Santos.
2. Manuel Vicente tornou-se um dos homens mais ricos de África durante os 12 anos em que presidiu à Sonangol, a mega-empresa de petróleo e gás de Angola. Em Janeiro de 2012, Eduardo dos Santos levou-o para o governo, como ministro de Estado e da Cooperação Económica. O Financial Times fez então um perfil de Vicente, apontando-o logo no primeiro parágrafo como sucessor (com a ressalva, sempre aconselhável, de que Eduardo dos Santos já tirara o tapete a outros). Para os optimistas, dizia o diário britânico, Vicente era “o tecnocrata” que fizera da Sonangol “uma operação internacional eficiente”; para os pessimistas, era “a cara apresentável de um regime que dá poucos sinais de abandonar o seu domínio autoritário do país, e a sua prontidão para manipular instituições com fins pessoais”. Homem “afável”, exprimindo-se num “inglês quase perfeito”, formado no Imperial College de Londres, Vicente é retratado como um refresh sofisticado da geração “sovietista” de Eduardo dos Santos, mas nem por isso menos aplicado no aproveitamento do poder. O seu império estende-se da banca ao imobiliário, e é um sinónimo da forma como a elite angolana mistura interesses pessoais, privados e de estado, resumia o Financial Times.
3. Semanas depois, o site Maka Angola deu um exemplo do extremo a que chega esse aproveitamento. Uma das paixões de Manuel Vicente, fiquei a saber, são os vinhos. De tal modo que ele enviava um avião Falcon a Lisboa e Paris para trazer os tesouros: conhaques de oito mil euros, vinhos de 11 mil (o Maka especifica marca e colheita). Os voos eram operados por uma empresa comparticipada pela Sonangol e a sua missão exclusiva consistia em transportar o ouro líquido. No caso de alguma escala forçada num país quente, Vicente ordenava que alugassem um quarto cinco estrelas de forma a manter os vinhos a 18 graus. Fui conferir este quadro delirante com conhecedores da realidade angolana, responderam-me que é algo conhecido. Foi este homem que semanas depois, em Setembro de 2012, se tornou vice-presidente de Angola. O mesmo homem que não hesitou em dizer ao Financial Times: “Sou um tipo cristão. Não resulta se nós estivermos OK e as pessoas em volta não tiverem nada para comer. Não nos sentimos confortáveis.” Uma citação sensacional depois do relato dos vinhos. Ou daquele outro, também no Maka: depois de sair da Sonangol, Vicente terá continuado a receber 43.212 dólares (39.200 euros) por ano para pagar aos empregados domésticos.
4. À justiça portuguesa diz respeito o que se passa em solo português, e não é a primeira vez que Vicente é investigado. Mas é a primeira vez que uma investigação da justiça portuguesa chega ao ponto de o indiciar como suspeito de corrupção activa, para mais de um magistrado, já detido por alegadamente ter recebido “luvas”. Cabe à justiça julgar o caso, e, pela responsabilidade das partes envolvidas, isso terá consequências importantes, quer a acusação seja provada, quer não.
5. Relembrando, pois, a acusação: o procurador Orlando Figueira terá recebido “luvas” para arquivar processos contra figuras do regime angolano. Concretamente, centenas de milhares de euros para encerrar uma investigação ao vice-presidente Manuel Vicente por branqueamento de capitais. A confirmar-se o que começou a vir ao de cima (reporto-me a informações do PÚBLICO, cruzadas com Expresso, Observador, Visão e Diário de Notícias), estaremos perante um processo que abrange justiça e banca em Portugal, negócios e governo de Angola.
Esboço de uma cronologia:
— Entre 1999 e 2012, Manuel Vicente é presidente da Sonangol. Nesse período, a Sonangol torna-se accionista maioritária do BCP. Por inerência, Vicente passa a vice-presidente do conselho geral do banco.
— Em Abril de 2011, ainda presidente da Sonangol, Vicente compra um apartamento no Estoril por 3,8 milhões de euros. A justiça portuguesa investiga a compra, suspeitando de branqueamento de capitais.
— Durante 2011, o procurador Orlando Figueira visita Angola para palestras, em Maio é convidado do casamento do procurador-geral de Angola. No final do ano pede uma licença sem vencimento do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).
2012 é o ano-chave:
— Em Janeiro, o DCIAP atribui a licença a Figueira, com início a partir de Setembro. A decisão não é pacífica, dá-se após uma discussão interna quanto ao risco de uso futuro, no sector privado, das informações que o procurador detinha. Entretanto, Orlando Figueira arquiva a investigação em que Manuel Vicente era suspeito. Centenas de milhares de euros são transferidos para a conta que o procurador abrira num banco angolano (Banco Privado Atlântico, filial portuguesa).
— No fim de Janeiro, Manuel Vicente deixa a Sonangol para integrar o governo de José Eduardo dos Santos.
— Em Maio, já ministro, Manuel Vicente vende o apartamento do Estoril por quatro milhões a uma sociedade anónima. O presidente do conselho de administração dessa sociedade é a mesma pessoa que fora seu procurador para a compra e, de novo, o representa na venda.
— Em Setembro, Orlando Figueira inicia a sua licença de longo prazo. Sem período de “nojo”, vai trabalhar para o BCP como “Compliance Office Advisor” (prevenção de branqueamento de capitais). Manuel Vicente ascende a vice-presidente de Angola.
— Em Outubro, a Sonangol reforça a sua posição de accionista maioritário no BCP.
— Em 2014, Figueira torna-se também consultor externo do Activo Bank, que pertence ao BCP.
— Até ao fecho desta crónica, o seu nome constava da lista de advogados do escritório BAS, como especialista de “Direito penal e criminalidade económico-financeira”, em acumulação com as consultorias no BCP.
6. Como é que o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, terá recebido a notícia de que Vicente é suspeito de corromper o procurador? Impossível não pensar nisso, tendo em conta que em 2013 Machete pediu desculpas a Angola pelas investigações da justiça portuguesa a figuras do regime, conseguindo assim, em simultâneo, obsequiar o governo angolano e desrespeitar a justiça portuguesa. À justiça cabe a justiça, aos governantes a política. Em relação a Angola, o governo de Passos Coelho conseguiu interferir onde não devia (justiça) e não interferir onde devia (política): em 2015, quando Luaty Beirão corria risco de vida, 14 outros jovens estavam detidos, e se mantinha a intransigência repressiva do regime angolano, o governo português notabilizou-se pela ausência, quando o caso era político e envolvia um cidadão também português. Espera-se o contrário, um governo que não interfira na justiça e interfira na política quando é caso disso. Respeitar a soberania de um país não implica engolir sistematicamente violações dos direitos humanos, ao contrário, essa pressão devia ser parte do trabalho diplomático.