“Um dia e uma noite excepcionais para os sírios”

A trégua saída de um acordo negociado entre Estados Unidos e Rússia foi cumprida em grande parte nas principais cidades da Síria. Os aviões russos não saíram do chão.

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Sírios num interior de uma casa abandonada por habitantes em fuga da guerra, nos subúrbios de Damasco Amer Almohibany/AFP

Não foi um dia sem disparos nem bombas ou mortos mas foi um dia diferente, “um dia e uma noite excepcionais para os sírios”, nas palavras do enviado das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura. A trégua negociada pelo Grupo Internacional de Apoio à Síria, co-presidido pelos Estados Unidos e pela Rússia, entrou em vigor ao início da madrugada, pouco depois da aprovação de uma resolução do Conselho de Segurança a pedir que seja respeitada.

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Não foi um dia sem disparos nem bombas ou mortos mas foi um dia diferente, “um dia e uma noite excepcionais para os sírios”, nas palavras do enviado das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura. A trégua negociada pelo Grupo Internacional de Apoio à Síria, co-presidido pelos Estados Unidos e pela Rússia, entrou em vigor ao início da madrugada, pouco depois da aprovação de uma resolução do Conselho de Segurança a pedir que seja respeitada.

Os russos, que entraram na guerra a 30 de Setembro para apoiar o regime de Bashar al-Assad, decidiram que os seus aviões não voariam ao longo de todo o sábado para “evitar bombardeamentos por engano” – a “cessação de hostilidades” excluiu o combate a grupos considerados terroristas, nomeadamente o autodesignado Estado Islâmico e a Frente al-Nusra (ligada à Al-Qaeda).

Dos céus, e até ao início da noite, sabe-se que caíram cinco bombas de barril (barris cheios de explosivos, munições e estilhaços que se espalham, matando indiscriminadamente) numa vila da província de Idlib, no Noroeste. Segundo a ONG Observatório dos Direitos Humanos Sírios, na zona há vários grupos de combatentes, incluindo a Frente al-Nusra. Há homens que respondem à Nusra e que lutam ao lado de outros grupos rebeldes em diferentes áreas, facto que a oposição e os seus aliados temem que os russos venham a usar para continuar a bombardear facções que assinaram o acordo.

Um porta-voz de uma divisão que integra o Exército Livre da Síria (primeiro grupo da oposição armada, formado em 2012 por desertores e civis para defender as populações do regime) acusou o Governo de largar oito bombas de barril numa zona da província de Latakia, a capital do chamado país alauita, onde se concentram os sírios da confissão xiita de Assad.

O Estado Islâmico aproveitou para atacar Tal Abyad, perto da fronteira com a Turquia, vila que a principal milícia curda tomou o ano passado aos jihadistas. Os curdos responderam, apoiados por aviões da coligação internacional formada pelos Estados Unidos e houve dezenas de mortos dos dois lados. Um carro armadilhado matou duas pessoas na província de Hama (Centro), num ataque reivindicado pelo Estado Islâmico.

Nos arredores de Damasco, no bairro de Jobar, caíram uma dezena de rockets sem que seja certo quem os lançou. Mas em Ghuta ou Duma, zonas controladas por opositores nos subúrbios da capital e bombardeadas diariamente, não houve quaisquer raides ou confrontos. O mesmo aconteceu em Alepo, cidade que desde 2012 está transformada num campo de batalha, ou em Homs.

Ambiente de surpresa
Na prática, a trégua, que o regime e quase 100 facções rebeldes se comprometeram a cumprir, aplica-se a uma pequena parte do território, mas são zonas urbanas, com muita população. Para além de Damasco, Alepo, Homs, Hama, vigora em Deraa, no Sul. O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russos, Sergei Lavrov, falaram ao telefone ao final do dia e concluíram que as armas estiveram caladas na maioria das principais cidades.

“Hoje, estou mais optimista. Eu e os meus amigos estamos contentes. É a primeira vez que acordo sem o som da artilharia. Damasco é uma cidade tão bonita sem guerra”, disse à AFP Ammar al-Rai, estudante de Medicina de 22 anos que vive na capital.

“Fechados por causa do cessar-fogo”, atreveu-se a brincar, na rede Twitter, a organização Capacetes Brancos, que agrupa voluntários que tentam resgatar vítimas após cada bombardeamento do regime das regiões conquistadas pela oposição. “Em geral, há um ambiente de surpresa pela redução significativa dos ataques”, disse o grupo num comunicado. Ao telefone com o Washington Post, o porta-voz da equipa de Capacetes Brancos da província de Deraa perguntou ao jornalista: “Ouve isto? É o som de pássaros a cantar”.

Quando a trégua tinha acabado de entrar em vigor, Mistura descrevia-a “como a melhor oportunidade em cinco anos para o povo sírio”, antecipando que haverá violações  e pedindo às partes para evitarem uma escalada. Está previsto que os combates se interrompam inicialmente durante duas semanas. Ao longo deste período, a ONU deverá organizar distribuição de ajuda aos muitos civis que dela necessitam. E espera-se que as negociações entre o regime e a oposição recomecem a 7 de Março, em Genebra.

Foi apenas um dia, quase cinco anos depois do início da revolta que Assad esmagou até se transformar num conflito brutal onde já morreram centenas de milhares de pessoas. Para muitos sírios foi, apesar de tudo, um dia diferente.