O poder cibernético
Quando, ao longo dos anos 80 e 90 do século passado, filósofos, sociólogos, escritores, artistas e semiólogos da cultura pop, caindo num escondido progressismo que ao mesmo tempo consideravam caduco enquanto concepção da história, se aplicaram a decifrar e recensear os signos de uma nova época histórica anunciada como pós-moderna, os romances de Umberto Eco, e especialmente O Nome da Rosa, eram considerados como exemplos cimeiros do romance pós-modernista, uma classificação que tinha começado por ter algum sentido preciso – formalizado num “estilo” – na arquitectura. Agora, por ocasião da morte de Umberto Eco, pudemos comprovar o apagamento puro e simples das noções de pós-modernidade e pós-modernismo: em vão procuramos nos inúmeros obituários e evocações que lhe foram feitos nos principais jornais europeus uma única referência que o inscreva nessa “tendência” que teve a pretensão de ser a marca de uma nova época cultural e social. As análises da condição epocal nomeada pós-moderna só nalguns aspectos foram revogadas e, no essencial, permanecem actuais. O que se revelou inadequado e até viciado por um uso irresponsável e sem rigor, à altura do espírito frívolo e ecléctico da época, foi o nome, declinado em três formas que nunca foram fixadas com rigor conceptual: pós-modernidade, pós-moderno, pós-modernismo. O momento fundador foi o livro de Lyotard, La condition postmoderne, de 1979. Este pequeno livro começou por ser um relatório sobre o saber nas sociedades desenvolvidas, que lhe tinha sido encomendado pelo Governo do Québec. Ora, nesse relatório, escrito muito antes da Internet e do desenvolvimento do “capitalismo cibernético” ou informacional, a que Jeremy Rifkin chamou “capitalismo do acesso”, Lyotard caracterizou a “condição pós-moderna” sob o signo da informática e da superação da ideologia romântica da Bildung, essa palavra alemã que condensa algo que só podemos traduzir com diferentes palavras: cultura, civilização, formação, educação. No final do seu relatório, Lyotard afirmava em tom profético: “Quanto à informatização das sociedades (...), ela pode tornar-se o instrumento ‘sonhado’ de controlo e de regulação do sistema do mercado, estendido ao próprio saber”. Estas palavras remetiam para a hipótese do triunfo total da sociedade de controlo. Recordemos que os pioneiros da informática não ignoraram de modo nenhum o alcance apocalíptico das suas pesquisas. Wiener escreveu mesmo um pequeno livro em que compara os primeiros computadores ao Golem da Cabala. Não é pois de admirar que o grupo colectivo reunido em torna da revista francesa Tiqqun, da qual surgiu o “Comité Invisible”, defendendo estratégias de insurreição e subversão que não se inserem na lógica moderna da revolução nem nas modalidades históricas da revolta, definiu o processo de cibernetização como rosto que caracteriza o tempo pós-modeno. A cibernética, até no seu significado etimológico, é uma forma de governo. Deste ponto de vista, o poder cibernético que governa o mundo, que esse grupo anónimo analisa com os instrumentos que Foucault forneceu para a análise das práticas e dos dispositivos governamentais, na medida em que é um poder logístico, só pode ser combatido com acções de bloqueamento e sabotagem. A Internet é uma máquina de guerra, a cibernética é uma nova tecnologia de governo e o ponto de partida e de chegada do novo capitalismo, pelo que só a entropia (esse conceito fundamental da teoria da informação) o pode combater. Provocar a entropia é ficar invisível para os instrumentos de vigilância e de captura, tornar-se opaco para a visão cibernética.
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Quando, ao longo dos anos 80 e 90 do século passado, filósofos, sociólogos, escritores, artistas e semiólogos da cultura pop, caindo num escondido progressismo que ao mesmo tempo consideravam caduco enquanto concepção da história, se aplicaram a decifrar e recensear os signos de uma nova época histórica anunciada como pós-moderna, os romances de Umberto Eco, e especialmente O Nome da Rosa, eram considerados como exemplos cimeiros do romance pós-modernista, uma classificação que tinha começado por ter algum sentido preciso – formalizado num “estilo” – na arquitectura. Agora, por ocasião da morte de Umberto Eco, pudemos comprovar o apagamento puro e simples das noções de pós-modernidade e pós-modernismo: em vão procuramos nos inúmeros obituários e evocações que lhe foram feitos nos principais jornais europeus uma única referência que o inscreva nessa “tendência” que teve a pretensão de ser a marca de uma nova época cultural e social. As análises da condição epocal nomeada pós-moderna só nalguns aspectos foram revogadas e, no essencial, permanecem actuais. O que se revelou inadequado e até viciado por um uso irresponsável e sem rigor, à altura do espírito frívolo e ecléctico da época, foi o nome, declinado em três formas que nunca foram fixadas com rigor conceptual: pós-modernidade, pós-moderno, pós-modernismo. O momento fundador foi o livro de Lyotard, La condition postmoderne, de 1979. Este pequeno livro começou por ser um relatório sobre o saber nas sociedades desenvolvidas, que lhe tinha sido encomendado pelo Governo do Québec. Ora, nesse relatório, escrito muito antes da Internet e do desenvolvimento do “capitalismo cibernético” ou informacional, a que Jeremy Rifkin chamou “capitalismo do acesso”, Lyotard caracterizou a “condição pós-moderna” sob o signo da informática e da superação da ideologia romântica da Bildung, essa palavra alemã que condensa algo que só podemos traduzir com diferentes palavras: cultura, civilização, formação, educação. No final do seu relatório, Lyotard afirmava em tom profético: “Quanto à informatização das sociedades (...), ela pode tornar-se o instrumento ‘sonhado’ de controlo e de regulação do sistema do mercado, estendido ao próprio saber”. Estas palavras remetiam para a hipótese do triunfo total da sociedade de controlo. Recordemos que os pioneiros da informática não ignoraram de modo nenhum o alcance apocalíptico das suas pesquisas. Wiener escreveu mesmo um pequeno livro em que compara os primeiros computadores ao Golem da Cabala. Não é pois de admirar que o grupo colectivo reunido em torna da revista francesa Tiqqun, da qual surgiu o “Comité Invisible”, defendendo estratégias de insurreição e subversão que não se inserem na lógica moderna da revolução nem nas modalidades históricas da revolta, definiu o processo de cibernetização como rosto que caracteriza o tempo pós-modeno. A cibernética, até no seu significado etimológico, é uma forma de governo. Deste ponto de vista, o poder cibernético que governa o mundo, que esse grupo anónimo analisa com os instrumentos que Foucault forneceu para a análise das práticas e dos dispositivos governamentais, na medida em que é um poder logístico, só pode ser combatido com acções de bloqueamento e sabotagem. A Internet é uma máquina de guerra, a cibernética é uma nova tecnologia de governo e o ponto de partida e de chegada do novo capitalismo, pelo que só a entropia (esse conceito fundamental da teoria da informação) o pode combater. Provocar a entropia é ficar invisível para os instrumentos de vigilância e de captura, tornar-se opaco para a visão cibernética.