Sidney Poitier: nos anos 60 o cinema negro era ele

Foi o primeiro actor negro a ser nomeado para o Óscar. Foi o primeiro a ganhá-lo. Morgan Freeman ou Samuel L. Jackson consideram-se hoje em sua dívida. Para outros, foi demasiado branco.

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Gregory Peck, Patricia Neal, Sidney Poitier e Anne Bancroft na cerimónia de 1964 DR

Em 1964, na década do movimento dos direitos civis e meses depois do assassinato do Presidente John F. Kennedy, um homem belo, alto, eloquente – e negro – ganhava o Óscar de Melhor Actor. Inscrevia-se na história da cultura americana e mundial e, passo a passo, abria portas para novas gerações de actores negros e novos papéis. Pouco depois, os Black Panthers chamavam-lhe “Uncle Tom” e um dramaturgo achava que era um “showcase nigger”, um “preto de vitrine”. As complexidades da representação de uma população em luta eram plenas de nuances.

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Em 1964, na década do movimento dos direitos civis e meses depois do assassinato do Presidente John F. Kennedy, um homem belo, alto, eloquente – e negro – ganhava o Óscar de Melhor Actor. Inscrevia-se na história da cultura americana e mundial e, passo a passo, abria portas para novas gerações de actores negros e novos papéis. Pouco depois, os Black Panthers chamavam-lhe “Uncle Tom” e um dramaturgo achava que era um “showcase nigger”, um “preto de vitrine”. As complexidades da representação de uma população em luta eram plenas de nuances.

“A minha ansiedade cresceu até ser insuportável. Estava ali sentado a ser rasgado por dentro… totalmente fora de mim de nervoso”, descreve o actor sobre a espera para ouvir o nome do vencedor do Óscar em 1964. Seis anos antes, já tinha sido o primeiro negro nomeado para o Óscar de Melhor Actor por Os Audaciosos. Agora, jurava que nunca mais se colocaria naquela posição, naquela espera angustiante. Mas lembrava a si mesmo: “Este é um momento importante e tenho de estar aqui e de facto quero estar aqui pelo que significa para nós enquanto povo”, escreveria Poitier na sua biografia This Life (1980).

Em Abril de 1964, na esteira da distinção do actor, o New York Times considerava que o entusiasmo que rodeou o prémio, “era um audível grito de alívio porque, finalmente, outra barreira racial importante na indústria do cinema americano tinha sido ultrapassada”. Mesmo o pequeno escândalo que agitou parte do público, na sala durante a cerimónia, por Anne Bancroft lhe ter dado um beijo no rosto ao entregar-lhe a estatueta não empolou o optimismo do actor, que não acreditava que o prémio fosse mudar as oportunidades para os negros em Hollywood no imediato. Nem aplacou as críticas que lhe fazem até hoje – a ideia que Sidney Poitier vive entre a imagem do actor emblemático pioneiro e o homem de mostruário dos brandos costumes.  

“Os actores negros e os filmes sobre preconceito racial deixaram a sua marca mais impressionante em 1967, com três filmes com Sidney Poitier: O Ódio Que Gerou o Amor, Adivinha Quem Vem Jantar e No Calor da Noite”, enumera Emanuel Levy no livro And the winner is… the History and Politics of the Oscar Awards. “Em consequência, Poitier tornou-se o primeiro actor negro a ser escolhido como a estrela mais popular na América em 1968. Subitamente, o negro não só era belo, mas também bom para o negócio nas bilheteiras”.

Nos anos 1960, o cinema negro era ele. Era o actor mais popular, aquele que dizia publicamente que rejeitava papéis estereotipados, e também parecia ser o único que mais era chamado para novos projectos. Neste contexto, o bebé nascido prematuro em Miami e levado novamente para as Bahamas natais dos pais agricultores tinha-se tornado estrela. Morgan Freeman ou Samuel L. Jackson, entre muitos outros, consideram-se hoje em sua dívida mas, para alguns, era uma estrela demasiado branca - ou simplesmente superficial para alguns críticos brancos. “Sou o único actor negro que trabalha com regularidade. Represento dez milhões de pessoas neste país e milhões em África. Esperem até que haja seis de nós, e então um de nós pode desempenhar papéis de vilão o tempo todo”, ripostava.

Em Setembro de 1967, em pleno “ano Sidney Poitier”, o dramaturgo e realizador negro Clifford Mason escreve um artigo de opinião no New York Times em que provoca com o título “Por que é que a América branca gosta tanto de Sidney Poitier?”. Enumera as críticas aos papéis escolhidos pelo actor, e postula que ele não representa “uma imagem negra orgulhosa” nos seus desempenhos em O Ódio Que Gerou o Amor ou Os Lírios do Campo, que lhe deu o Óscar em 1964.

N'Os Lírios do Campo é um faz-tudo que ajuda um grupo de freiras alemãs a construir uma igreja. Mas parte da América talvez tivesse gostado de o ter visto vencer com o detective acusado de homicídio por um polícia racista do Mississippi em O Calor da Noite, de 1967. Ou ver outro tipo de papéis. Eles, os homens interpretados por Poitier, “falavam inglês correcto, vestiam-se de forma conservadora”, eram “o sonho perfeito para os liberais brancos ansiosos por receber um homem de cor para o almoço ou jantar”, como critica o historiador de cinema americano Donald Bogle.

E foi para jantar que convidaram o médico negro que vai conhecer os pais da sua noiva (branca) noutro filme de 1967 de Poitier. Em 1967, o casamento inter-racial era ilegal em 17 estados dos EUA e no filme ele e a sua co-protagonista, Katherine Houghton, davam o primeiro beijo inter-racial do cinema. Mas Adivinha Quem Vem Jantar encolerizou os líderes negros – um papel brando numa era de extremos fez com que os líderes dos Black Panthers lhe chamassem “Uncle Tom”, a figura arquetipal do negro subserviente para com os brancos.

“Quase todos os seus papéis eram figuras de razão e dignidade”,  escreveu o crítico de cinema Philip French no Guardian – médicos, advogados, professores, detectives, estudantes, jornalistas que muitas vezes se deparavam e desafiavam figuras racistas. Já Clifford Mason, no texto no diário nova-iorquino, acreditava que as suas personagens eram “irreais” e que Poitier era sempre o “good nigger” que ajudava os brancos, anulado na sua dimensão sensual. Mesmo o seu Virgil Tibbs em No Calor da Noite, nota, é “um dos bons num mundo completamente branco”. Não tem mulher, nem namorada, nem vida autónoma.

Sobre isso, Poitier acrescentaria, três décadas mais tarde, que uma das cenas-chave do filme, em que Tibbs interroga um branco afluente na cidade do Sul e ela lhe dá um estalo, como faria com naturalidade aos trabalhadores negros da região, a sua personagem esbofeteia-o de volta e rapidamente regressa à sua calma. Segundo outras memórias que escreveu, The Measure of a Man, o facto de a sua personagem ripostar foi uma ideia sua. E sobre as críticas ao longo da carreira, disse ao New York Times em 2000: "Não me senti vitimizado por nada disso". 

Sidney Poitier viveu nas Bahamas, depois em Miami e ainda lavou pratos na Geórgia e esteve no Exército. Estreou-se primeiro no teatro, em Lisístrata em 1946 na Broadway, e em 1950 no cinema com Joseph L. Mankiewicz no filme progressista No Way Out. Tinha um papel diferente dos tipos do costume para os negros – violentos, preguiçosos, escravos felizes ou serviçais. Era um jovem médico cujo paciente branco morria na mesa de operações, um caso que pode desencadear um motim racial numa pequena cidade americana, num filme que não foi mostrado no Sul dos EUA e censurado em alguns estados do Norte. Depois, ganhou protagonismo como um aluno de liceu em Blackboard Jungle em 1955 e em Os Audaciosos, papel que lhe deu a primeira nomeação, é metade de uma dupla de reclusos – a outra era o racista do Sul interpretado por Tony Curtis – que tem de se entreajudar para conseguir singrar

No ano em que a América só via Poitier, Martin Luther King Jr. foi assassinado quatro dias antes do Óscares que celebrariam dois dos seus filmes – Adivinha Quem Vem Jantar e No Calor da Noite. Poitier foi um dos artistas negros a anunciar que não estaria na cerimónia por ser demasiado próxima da data traumática. Os 40.ºs Óscares seriam adiados por isso. Quando se realizaram, dias mais tarde, No Calor da Noite venceu o Óscar de Melhor Filme.

No final dos anos 1970 tornava-se realizador, sem sucesso, foi diplomata, e continuou a actuar, com papéis que o mantiveram no âmbito das figuras de autoridade – chegou a ser considerado para o papel de Jed Bartlett em Os Homens do Presidente (The West Wing) na televisão. Em 2009, Barack Obama deu-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais elevada distinção dada a um civil nos EUA. Hoje, tem 88 anos. 

Só 38 anos depois do Óscar de Sidney Poitier é que outro negro recebeu o Óscar de Melhor Actor – e ele estava lá para ver. Foi em 2002, no ano dos “Óscares negros” que premiaram Denzel Washington e Halle Berry e que foram apresentados por Whoopi Goldberg. E que deram o prémio de carreira a Poitier - "antes de Sidney os actores afroamericanos tinham de aceitar papéis secundários que fossem fáceis de cortar [para serem exibidos] em certas partes do país. Mas não se podia cortar Sidney Poitier de um filme de Sidney Poitier", introduziu Denzel Washington.