Hattie McDaniel: a actriz que esperou pelo seu Óscar no fundo da sala
A actriz secundária de E Tudo o Vento Levou foi a primeira negra a vencer um Óscar, em 1940. Foi acusada de colaboracionismo.
A primeira actriz negra a receber um Óscar subiu ao palco num edifício que não permitia a entrada a negros. Ficou ao fundo da sala, que atravessou para protagonizar o momento histórico em que recebeu o prémio. Hattie McDaniel é a eterna Mammy de E Tudo o Vento Levou, papel que lhe deu um lugar na história mas não na frente da sala da cerimónia, e uma personagem tanto recordada quanto criticada pela comunidade negra – uma criada agradecida e vivaça, um dos papéis mais tipificados dados aos actores negros.
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A primeira actriz negra a receber um Óscar subiu ao palco num edifício que não permitia a entrada a negros. Ficou ao fundo da sala, que atravessou para protagonizar o momento histórico em que recebeu o prémio. Hattie McDaniel é a eterna Mammy de E Tudo o Vento Levou, papel que lhe deu um lugar na história mas não na frente da sala da cerimónia, e uma personagem tanto recordada quanto criticada pela comunidade negra – uma criada agradecida e vivaça, um dos papéis mais tipificados dados aos actores negros.
Naquela noite de Fevereiro de 1940, o produtor David O. Selznick sentou-se na mesa reservada à equipa do épico da Guerra Civil com as suas estrelas. Vivien Leigh, Clark Gable e Olivia de Havilland, também nomeada para o Óscar de Melhor Secundária, estavam ao seu lado. Hattie McDaniel ficou numa mesa na parte de trás da sala, junto a uma parede, mesmo sabendo já que tinha ganho – uma fuga de informação tinha revelado o rol de vencedores dos 12.ºs prémios da Academia. Ainda assim, relatava a revista Hollywood Reporter no 75.º aniversário do prémio, a sala emocionou-se. Fazia-se história.
“Este é um dos momentos mais felizes da minha vida. Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria do cinema”, agradeceu, emocionada, gardénias brancas no cabelo e lenço nos olhos.
O discurso fora escrito pelo estúdio. E acabaria por indiciar os problemas entre a indústria e com a comunidade negra – Mammy é apenas um de 74 papéis de criada, serva ou empregada que Hattie desempenhou, simultaneamente exemplo do typecasting dos actores afro-americanos, das oportunidades limitadas e estereotipadas que lhes eram atribuídas, e do tipo de imagem que os que lutavam pelos direitos civis da comunidade queriam afastar. Mais tarde, sublinharia que quis “transformar aquele papel tipificado numa personagem que vive e respira” – lembrava-a da avó, que viveu numa plantação como a Tara de E Tudo o Vento Levou.
Nos 76 anos seguintes ao prémio de McDaniel, 13 outros actores negros venceram um Óscar (resultantes de 65 nomeações de um total de 1663). Este ano, tal como em 2015, não há um único actor negro nomeado. Este ano, Barack Obama, o primeiro Presidente negro dos EUA, está no fim do seu segundo mandato. Em 1940, existiam inúmeras barreiras ao voto dos negros em vários estados. E naquele ano, Hattie McDaniel fez campanha junto de Selznick e ele nomeou-a para os Óscares – e também teve de cobrar um favor para deixarem a actriz entrar no Ambassador Hotel, em cujo clube nocturno, o Cocoanut Grove, decorriam os 12º.s Óscares. Era segregado, não permitia a entrada de negros. Por isso, o resto do elenco afro-americano do filme não assistiu à entrega do prémio histórico.
À entrada do Ambassador Hotel, houve manifestações como as que rodearam a estreia de E Tudo o Vento Levou (o filme mais rentável de sempre quando ajustada a inflação). Protestavam contra o que consideravam ser o racismo do filme. Desde que foi anunciada a produção, adaptando o romance de Margaret Mitchell, o projecto chamou a atenção das associações de afro-americanos e da “imprensa negra”. Entre várias opiniões, o facto de aquele retrato do Sul esclavagista ser permissivo em relação ao Ku Klux Klan – “uma necessidade trágica”, lê-se no romance – ou de mostrar Mammy como a escrava de casa e depois a ex-escrava nostálgica dos bons velhos tempos eram pontos de tensão.
Mammy era a criada “boa”, descrita de forma sintomática, tal como outros personagens negros no livro, como uma simplória. Ao ver Tara a arder, no livro de Mitchell Mammy estava “triste e com a tristeza da incompreensão da cara de um macaco”, lembra o investigador Leonard J. Leff num ensaio publicado na revista Atlantic.
Antes do Óscar, Hattie McDaniel, nascida no Kansas em 1885 numa família de 13 irmãos, vinha de dezenas de papéis quase sempre sem crédito no ecrã e sem falas. Muitas criadas – a sua figura e tom de pele facilitavam nos castings, correspondendo aos esterótipos das “mammies” negras –, como a de Marlene Dietrich em A Vénus Loira (1932). O seu primeiro papel creditado foi num filme de John Ford, O Juiz Priest (1934), como uma criada que cantava.
Depois do Óscar, sentiu: “O meu próprio povo estava especialmente feliz. Sentiam que, ao honrar-me, Hollywood estava a distinguir toda a raça. Era isso que eu queria”, escreveu num artigo de opinião na Hollywood Reporter em 1947.
O filme não era “antinegro”, garantia Selznick, que tinha recebido cartas de organizações de todo o país e que dialogou com a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), uma das mais importantes e antigas organizações em prol dos direitos dos afro-americanos, para tentar esvaziar polémicas. A NAACP fez campanha para que os epítetos raciais fossem eliminados do filme e as cenas com a milícia racista do Ku Klux Klan foram alteradas. Antes de ser lançado, o uso das palavras “nigger” e “darkie” foi desaconselhado pelos censores do estúdio – na boca de personagens brancas. Terá sido o relações-públicas do estúdio que conseguiu que "nigger" tivesse ficado de fora do filme, escreve Leff na Atlantic, embora muitos historiadores de cinema considerassem plausível que Hattie McDaniel tivesse tido um papel nisso.
“Nunca pedi desculpa pelos papéis que desempenho. Convenci muitas vezes realizadores a omitir calão dos filmes modernos”, escreveu a actriz na revista especializada, amargurada pela forma como o seu Óscar foi recebido por parte da comunidade afro-americana. “Fui censurada por alguns da minha raça por não me juntar à denúncia” da forma como os negros eram retratados em Hollywood, lamentou-se ainda sobre a campanha que subiu de tom no pós-II Guerra.
Logo em 1939, escreveu-se que E Tudo o Vento Levou era “uma arma de terror contra a América negra” e que a Mammy de McDaniel era como uma colaboracionista, devota à família “que ajudou a manter o seu povo acorrentado durante séculos”. O líder da NAACP, Walter White, criticou-a pelo papel que lhe deu o Óscar. McDaniel respondeu: “Que papel esperava que eu desempenhasse? A mulher de Rhett Butler?”, cita o documentário Beyond Tara: The Extraordinary Life of Hattie McDaniel.
Uma outra frase da actriz ficaria famosa: “Prefiro interpretar uma criada e ganhar 700 dólares por semana do que ser uma criada e ganhar sete dólares”.
As suas irmãs e a sua mãe, cantora gospel, trabalhavam como criadas quando ela era menina e foi para o evitar que começou a actuar no espectáculo da trupe do seu pai, que era também pastor religioso. Cantava, dançava e destacava-se nas suas imitações de brancos, de cara pintada de branco. Já em Los Angeles, ao longo da sua carreira, contracenaria com Joan Crawford, Jean Harlow, Barbara Stanwyck, Bette Davis ou Jimmy Stewart.
Clark Gable, o Rhett Butler de E Tudo o Vento Levou, tornar-se-ia um amigo – que, por causa dela, quase não foi à estreia do filme em Atlanta num cinema só para brancos. Hattie e os outros negros estavam banidos. No evento, que acabou por ser mesmo só para os actores brancos, havia um coro de adolescentes, vestidos de escravos, a cantar no cinema. Um deles era o jovem Martin Luther King Jr.
As críticas de que foi alvo marcaram-na. “Disseram-me que mantive vivo o estereótipo do criado negro nas mentes dos espectadores. Creio que os meus críticos pensam que o público é mais ingénuo do que na verdade é”, escreveu McDaniel em 1947.
Após o prémio da Academia, era cada vez menos solicitada para cinema. Em alternativa, tornar-se-ia a primeira negra a protagonizar um programa de rádio nos EUA. O seu Óscar, que doou a uma universidade, acabaria por perder-se e o seu paradeiro é hoje desconhecido.
Hattie McDaniel, a filha de dois antigos escravos reconhecida pela primeira vez pela indústria em Los Angeles em 1940, ficou com um lugar no panteão. Mas não no Hollywood Cemetery, após a sua morte, como era seu desejo – os negros não podiam ser ali sepultados. Morreu com 57 anos, de cancro da mama, em 1952 – três anos antes da primeira nomeação de uma afro-americana para o Óscar de Melhor Actriz – Dorothy Dandridge, num ano em que o prémio foi para Grace Kelly –, e seis anos antes de o primeiro negro ser nomeado para o Óscar de Melhor Actor – Sidney Poitier, por Os Audaciosos; passados 12 anos, o actor venceria essa estatueta por Os Lírios do Campo. Seria preciso esperar cinco décadas para que Halle Berry fosse a primeira negra a receber o Óscar de Melhor Actriz.