Apple acusa FBI de querer "o equivalente ao cancro dos programas informáticos"

Tim Cook decidido a não criar um programa para romper a segurança do iPhone usado por um dos terroristas de San Bernardino. Empresa diz que todos os telemóveis ficarão mais vulneráveis a ataques criminosos.

Foto
As sondagens indicam que o patrão da Apple tem uma dura batalha pela frente Lucy Nicholson/Reuters

Durante anos, milhões de consumidores em todo o mundo habituaram-se a venerar a Apple e a passar noites a fio ao relento para poderem comprar um dos icónicos aparelhos da marca. Mas agora a empresa fundada por Steve Jobs e Steve Wozniak arrisca-se a passar do céu ao inferno, vendo-se obrigada a explicar todos os dias por que não aceita de uma vez por todas ajudar o FBI a entrar no telemóvel de Syed Rizwan Farook, o terrorista que matou 14 pessoas na Califórnia em nome do Estado Islâmico em Dezembro passado.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Durante anos, milhões de consumidores em todo o mundo habituaram-se a venerar a Apple e a passar noites a fio ao relento para poderem comprar um dos icónicos aparelhos da marca. Mas agora a empresa fundada por Steve Jobs e Steve Wozniak arrisca-se a passar do céu ao inferno, vendo-se obrigada a explicar todos os dias por que não aceita de uma vez por todas ajudar o FBI a entrar no telemóvel de Syed Rizwan Farook, o terrorista que matou 14 pessoas na Califórnia em nome do Estado Islâmico em Dezembro passado.

Posta desta forma, a questão parece ser muito simples de resolver: de um lado, a privacidade de um utilizador da Apple, ainda por cima terrorista; do outro, a luta contra a ameaça de um grupo que já decapitou centenas de pessoas na Síria e no Iraque e matou a tiro e à bomba várias dezenas em França.

É desta forma que a questão foi posta pelo FBI, na semana passada, quando pediu a um tribunal da Califórnia que obrigasse a Apple a desbloquear o telemóvel iPhone 5C de Farook, que os investigadores encontraram no veículo que ele e a sua mulher, Tashfeen Malik, usaram para se deslocar durante o ataque no condado de San Bernardino.

Mas o actual patrão da Apple, Tim Cook, bateu o pé ao tribunal e anunciou que vai lutar até ao fim contra a ordem, numa decisão que já foi apoiada por gigantes como o Google, o Facebook ou o Twitter – Bill Gates, co-fundador e antigo presidente da Microsoft, saiu em defesa do FBI, mas os actuais líderes da empresa apoiaram implicitamente a Apple, ao partilharem o comunicado da coligação Reform Government Surveillance, que contesta a ordem do tribunal.

Depois de duas cartas abertas publicadas no site da empresa – uma delas a explicar as razões da sua posição e a outra a rebater a acusação do FBI de que tudo não passa de uma manobra de marketing da Apple –, Tim Cook deu uma entrevista ao canal ABC News, na qual se esforçou mais uma vez por explicar os seus argumentos, depois de uma sondagem ter mostrado que a maioria dos inquiridos está do lado do FBI.

Confrontado com a "fúria" e "confusão" dos familiares das vítimas do ataque terrorista em resposta à posição da Apple, Cook começou por dizer que "ninguém deveria ser obrigado a passar pelo que eles passaram", mas defendeu que "este caso não diz respeito apenas a um telefone".

"Provavelmente há mais informação sobre si no seu telemóvel do que em sua casa. Os nossos telemóveis estão carregados com conversas íntimas, informação bancária, com os nossos registos médicos, e em muitos casos até com a localização dos nossos filhos. Por isso, não se trata apenas de privacidade, mas também de segurança pública", disse Tim Cook.

Perante a possibilidade de o telemóvel em causa conter informações sobre futuros atentados terroristas – provavelmente a questão que mais inquieta quem critica a Apple neste caso –, Cook deu uma resposta que demonstra bem o beco sem saída em que a sua empresa pode ter acabado de entrar perante os olhos da opinião pública: "Algumas situações são difíceis, outras situações são correctas. E algumas situações são ambas as coisas. Esta é uma dessas situações."

O iPhone 5C de Syed Rizwan Farook está bloqueado com um código que qualquer utilizador pode definir no seu telemóvel para impedir que outra pessoa veja as suas fotografias ou as suas mensagens, por exemplo. O problema é que os investigadores do FBI não sabem qual é esse código e Farook pode ter activado uma função que existe em qualquer iPhone – à 10.ª tentativa errada, tudo o que estiver guardado nesse telemóvel desaparece para sempre.

O que o FBI pediu ao tribunal foi que a Apple ajude os investigadores a acederem à informação guardada por Farook, mas de uma forma que a empresa considera ser perigosa e que deixaria vulneráveis todos os outros iPhones existentes no mercado – no âmbito da investigação, a empresa já cedeu ao FBI as cópias (backups) que o terrorista fez para o serviço iCloud até Outubro (dois meses antes do ataque), data em que Farook deixou de fazer essas cópias.

Agora, se o telemóvel em causa tiver alguma informação de interesse para o FBI, só é possível extraí-la de dentro do próprio telemóvel, e não a partir de um qualquer serviço na chamada "nuvem", onde poderia estar uma cópia recente desse conteúdo.

"A Apple tem colaborado totalmente com o FBI neste caso. Eles vieram ter connosco e pediram-nos toda a informação que tínhamos sobre o telemóvel, e nós demos tudo o que tínhamos", disse Tim Cook. E é por isso que o patrão da Apple diz que o objectivo do FBI é que a empresa abra uma espécie de porta das traseiras, por onde os investigadores possam entrar sem terem de bater à porta da frente, de que só a Apple tem a chave.

Repetindo o argumento de que os próprios investigadores perderam uma oportunidade para descobrirem o que está no telemóvel de Farook sem a ajuda da Apple, Tim Cook afirmou que "o FBI ordenou o condado a alterar a password do iCloud" nos primeiros dias da investigação. "Quando isso acontece, o telemóvel deixa de fazer cópias para o iCloud. Gostaria que eles nos tivessem contactado mais cedo, para que isso não tivesse acontecido."

Na prática, o FBI pede à empresa que crie de raiz um novo sistema operativo, que seria instalado apenas no iPhone 5C de Farook, e que permitisse fazer três coisas: desactivar a opção que apaga todos os dados do telemóvel ao fim de dez tentativas erradas; permitir que seja possível ligar o telemóvel a um computador que vai enviar milhares e milhares de combinações possíveis até acertar; e eliminar o tempo de espera entre cada uma dessas tentativas.

"O que está aqui em jogo é se o Governo pode obrigar a Apple a criar um programa que, segundo a nossa opinião, iria deixar vulneráveis centenas de milhões de utilizadores em todo o mundo. A única forma de fazer isto é criar um programa que para nós é o equivalente ao cancro dos programas informáticos", disse Tim Cook, numa referência ao receio de que esse programa pudesse depois cair nas mãos de organizações criminosas e abrir-lhes também a elas a mesma porta das traseiras que o FBI exige.

"Se tivéssemos uma forma de extrair a informação que está no telefone que não comprometesse a segurança de centenas de milhões de pessoas, é claro que o faríamos", disse o patrão da Apple, que se mostrou "desiludido" com a Administração Obama, com quem os gigantes da tecnologia têm dialogado sobre privacidade e segurança desde que o antigo analista Edward Snowden expôs uma série de programas de espionagem da Agência de Segurança Nacional norte-americana.

Na entrevista, Tim Cook não nega que poderia ter ajudado o FBI em segredo, dando a entender, mais uma vez, que na sua opinião o objectivo do Governo americano é estabelecer um precedente. "Não posso fazer comentários sobre a estratégia do FBI. Eles optaram por fazer o que fizeram, e optaram por fazê-lo publicamente. Neste momento, já que isto está a ser discutido publicamente, temos de defender princípios", disse Cook.

"Tivemos conhecimento do processo através da imprensa. Não é uma posição em que gostemos de estar. É uma posição muito desconfortável. Opormo-nos ao nosso Governo em qualquer assunto não nos deixa confortáveis. E opormo-nos num assunto em que somos nós que estamos a defender as liberdades cívicas, quando são eles que devem protegê-las, é incrivelmente irónico."

Esta quinta-feira, em declarações perante a Comissão de Serviços Secretos da Câmara dos Representantes, o director do FBI, James Comey, disse que a ordem do tribunal não vai estabelecer nenhum precedente, ao contrário do que teme a Apple. O responsável admitiu que a decisão "dará indicações a outros tribunais", mas defendeu que a evolução da tecnologia acabará por levantar outras barreiras no futuro, e que só o Congresso tem poder para ditar novas regras na relação entre as autoridades e as empresas de tecnologia.