“Falta podermos marcar consultas. Temos de acabar com corporativismos”
Ana Paula Martins, bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, anuncia que quer trabalhar mais e melhor com os médicos. Quer marcar consultas, renovar receitas, ajudar a vigiar casos de asma ou diabetes, alertar os médicos.E lembra que o actual modelo de remuneração das farmácias não é sustentável.
A principal meta da nova bastonária da Ordem dos Farmacêuticos (OF), que tomou posse na semana passada, será colocar médicos e farmacêuticos a trabalhar mais em conjunto. Se assim for, Ana Paula Martins acredita que será possível ter nas farmácias mais serviços para o utente, como marcação de consultas, renovação das receitas de doentes crónicos ou soluções para situações em que os doentes vão primeiro às farmácias: é o caso das infecções urinárias recorrentes ou da compra da pílula.
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A principal meta da nova bastonária da Ordem dos Farmacêuticos (OF), que tomou posse na semana passada, será colocar médicos e farmacêuticos a trabalhar mais em conjunto. Se assim for, Ana Paula Martins acredita que será possível ter nas farmácias mais serviços para o utente, como marcação de consultas, renovação das receitas de doentes crónicos ou soluções para situações em que os doentes vão primeiro às farmácias: é o caso das infecções urinárias recorrentes ou da compra da pílula.
No entanto, segundo defende ao PÚBLICO a professora universitária, na sua primeira entrevista após a eleição, nada disto é possível se não houver uma estabilização do preço dos medicamentos. Ana Paula Martins reconhece que a exportação paralela deixa as prateleiras das farmácias vazias e alerta que chegou a altura de rever a forma como as farmácias são pagas.
Quais são as prioridades para o seu mandato?
Há as internas e as externas. Mas em geral direi que considero que cumpri o meu mandato se, nos próximos três anos, farmacêuticos e médicos actuarem em conjunto e os doentes ganharem com isso. Nas prioridades internas elegemos a aproximação aos farmacêuticos como sendo uma área em que temos de investir muito. São cerca de 15 mil mas são pouco activos…
Isso viu-se nas eleições. Foi eleita com menos de 2000 votos.
Exacto, estão a participar pouco na vida da OF. Isto acontece nas outras ordens e no país, mas fazemos propostas em nome dos farmacêuticos aos governos, defendemos posições e não tendo os nossos sócios a rever-se nessas posições cria-se uma disfuncionalidade que enfraquece a OF.
E quais são as suas prioridades para os cidadãos?
Do lado externo elegemos como prioridade expandir a actividade farmacêutica e o serviço farmacêutico no SNS e no sistema de saúde. Em primeiro lugar refiro-me à carreira farmacêutica. Entrei ontem e já está pronta a ser legislada. Não é uma obra desta direcção, é uma obra que a anterior direcção repegou. Há 25 anos que isto é tema. A carreira farmacêutica permite, por exemplo, uma evolução e uma renovação de quadros que caso não se venha a verificar tenderíamos a deixar de ter farmacêuticos especializados.
Mas as carreiras dizem pouco aos cidadãos. O que querem mudar nas farmácias?
Queremos um alargamento dos serviços. Temos 3000 farmácias espalhadas pelo país inteiro e, por exemplo, uma grande parte tem já competências para apoio aos diabéticos na sua medicação e avaliação dos riscos que os diabéticos podem apresentar. Os diabéticos devem fazer autovigilância da sua glicémia e os aparelhos são cedidos nas farmácias e nós recebemos todos os dias milhares de pedidos para ensinar a utilização do dispositivo. Acontece o mesmo na asma. Não queremos substituir-nos aos médicos nem aos doentes, que têm saber fazer a gestão da sua medicação, mas somos um recurso.
A própria tutela disse que queria avançar com a dispensa de medicamentos para o VIH/sida e para o cancro nas farmácias. Que mais serviços podem avançar?
O caso dos medicamentos para o VIH foi proposta da tutela e estamos a estudar o melhor modelo, até de acordo com a liberdade de escolha do doente, que pode continuar a preferir ir ao hospital. Não queremos desenvolver serviços só por desenvolver ou para nos tornarmos mais importantes. O SNS tem necessidades que têm de ser respondidas e é nesse puzzle que queremos estar. A nossa prioridade é expandir serviços que já são feitos mas onde falta integração.
Como assim? Conseguirem encaminhar os resultados para o médico de família?
Por exemplo. Se eu identifico uma reacção adversa a um medicamento, como um antidiabético oral, notifico ao sistema. Mas não faz sentido que eu informe o médico daquele doente para ter isso em conta na prática clínica? Ou quando o doente diz na farmácia que vai abandonar a terapêutica por alguma razão, nós devemos sinalizar ao médico e até ajudar, se o sistema permitir, a encaminhar para consulta.
O que é necessário integrar?
A rede de farmácias pode e deve ter uma acção em termos de saúde pública de avaliação do risco de diabetes nos indivíduos que ainda não têm a doença. É um inquérito que se faz facilmente e a grande vantagem de ser na farmácia é o aconselhamento que se pode fazer para ir ao médico. Falta podermos marcar consultas. Avaliarmos o risco e depois não ajudarmos a que a pessoa tenha uma solução não faz sentido. Temos de acabar com corporativismos.
Uma das ideias é poderem preparar a terapêutica do doente para a semana?
Sim, nas várias doenças crónicas. Continuamos a ter um problema de adesão à terapêutica grande. É nestes serviços de apoio ao uso do medicamento que queremos entrar em diálogo muito estreito com a Ordem dos Médicos.
Isso passa por poderem renovar as receitas dos doentes crónicos como propôs o seu antecessor?
Pode ser uma das possibilidades. Renovar a terapêutica crónica e actuar em situações de emergência, como as infecções urinárias recorrentes, sabendo que encaminhamento podemos dar.
E que solução vê?
Não quero anunciar serviços sem falar com os médicos e sem estarmos coordenados. Temos de nos habituar a construir coisas em conjunto. Se tivermos um protocolo, actuaremos de acordo com o protocolo, que pode passar por conseguir uma consulta médica, fazer a recolha de urina para quando chegar ao médico… No limite, o médico pode dizer para em determinadas circunstâncias disponibilizarmos o antibiótico, mas mediante marcação de consulta. Outro exemplo é o do planeamento familiar. A contracepção é sujeita a prescrição e temos tido muitas situações em que ficamos extremamente desconfortáveis. Muitas vezes não vendo a pílula por falta de receita e a seguir estou a vender a pílula do dia seguinte. Temos de encarar isto de frente. É preciso sentarmo-nos com a Ordem dos Médicos e fazer uma proposta. Portugal é o único país que tem a pílula do dia seguinte fora das farmácias e não podemos vender [sem receita] a pílula na farmácia. É um contra-senso. Em termos de segurança e de aconselhamento isto não faz sentido nenhum. Nós não defendemos que a contracepção não seja sujeita a prescrição médica, o que defendemos é que haja um protocolo de actuação.
Tem defendido que o actual modelo de remuneração das farmácias não é sustentável. Como quer rever isso?
A OF defende que a remuneração passe por um modelo que dependa mais da actividade farmacêutica e menos do preço dos medicamentos. Neste momento é apenas uma margem sobre o preço do medicamento. Devemos remunerar os serviços pelos ganhos em saúde que conseguem. A remuneração que temos pelo produto é uma parte importante para a infra-estrutura funcionar. Mas a remuneração que vem do produto basicamente serve para cobrir esta parte da infra-estrutura e em alguns casos nem isso. Nos medicamentos mais baratos, que somos estimulados a vender, os cêntimos de margem não pagam a dispensa. Antes era assim mas a margem era outra.
Há países que pagam um valor fixo por receita. Defende esse modelo?
O modelo de pagamento por receita era uma possibilidade muito boa. A receita é mais do que um acto administrativo. É um acto profissional do médico e é através dela que o médico explicita o que o doente deve seguir e é uma forma de comunicação com a farmácia muito importante. No fundo há a componente ligada ao produto, que já é paga, a componente dos serviços, que noutros países representa 5% da remuneração, e a grande parte deve vir da assistência medicamentosa.
Depois destes anos de crise e com muitas das medidas a incidirem no sector do medicamento e com várias falhas de stock nas farmácias, ainda conseguem dar uma resposta de qualidade?
Temos tido muitas dificuldades. Temos pessoas nas farmácias que passam o dia a tentar arranjar os medicamentos que faltam. A tendência é para isto estabilizar, mas para isso temos de ter farmácias mais solventes.
Quais são os dados mais actualizados sobre insolvências?
Mais de 500 farmácias são insolventes e fecharam 25 nos últimos cinco anos. Mais de 1700 não têm dinheiro para pagar aos fornecedores. Algumas podem vir ainda a fechar. Em muitos casos as farmácias estão à venda mas ninguém as compra. As prateleiras estão vazias porque as farmácias não arriscam fazer stock, sobretudo de medicamentos mais caros. Depois há também o caso da exportação paralela que é legal…
Mas só é legal se Portugal não precisar dos medicamentos e não é isso que acontece.
Claro. É o que está a acontecer… o Infarmed [Autoridade Nacional do Medicamento] tem feito um bom trabalho mas leva tempo. Quanto mais baratos forem os medicamentos mais facilmente saem do país porque ganha-se com a exportação paralela. Se as pessoas não têm dinheiro para comprar medicamentos de um euro é porque também não têm para pão e leite. O que defendemos é um equilíbrio no sistema. Para os portugueses poderem ter medicamentos chegámos ao limite. Se houver pessoas que não consigam pagar um medicamento é preciso encontrar um sistema de serem protegidas. A solução não é continuar a baixar o preço ou o doente, mesmo que tenha dinheiro, não vai encontrar o medicamento nas farmácias. Não estou a falar de algo que pode acontecer, é algo que está nos está a acontecer.