Novo microscópio permite ver células cancerosas a três dimensões
Técnica que usa laser para iluminar amostras biológicas permite observação em tempo real de células num ambiente mais próximo do dos tecidos humanos vivos.
A microscopia continua a actualizar-se, permitindo aos cientistas observar cada vez mais pormenores das células, num ambiente cada vez mais próximo do dos tecidos vivos. Agora, uma equipa de investigadores norte-americanos aprimorou uma técnica de microscopia com laser, produzindo imagens tridimensionais de células cancerosas humanas vivas com uma minúcia inédita.
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A microscopia continua a actualizar-se, permitindo aos cientistas observar cada vez mais pormenores das células, num ambiente cada vez mais próximo do dos tecidos vivos. Agora, uma equipa de investigadores norte-americanos aprimorou uma técnica de microscopia com laser, produzindo imagens tridimensionais de células cancerosas humanas vivas com uma minúcia inédita.
As células foram colocadas no aparelho sem as dificuldades físicas que muitas vezes existem em microscopia, permitindo uma observação mais próxima do ambiente natural, no corpo humano, segundo o estudo publicado esta semana na revista Developmental Cell. Este pormenor é importante. A observação do comportamento das células mais próximo do natural poderá ajudar a descobrir como é que as células cancerosas resistem aos tratamentos contra o cancro e se espalham pelo corpo, produzindo as metástases.
A lâmina e a lamela são das primeiras palavras a entrar no vocabulário de quem frequenta as aulas iniciais de microscopia. A lâmina é um rectângulo de vidro grosso onde se coloca no centro o material biológico, que leva por cima algumas gotas de água ou de um líquido corante, quando se quer tingir uma estrutura celular para se ver melhor.
Depois, coloca-se a lamela – um quadrado finíssimo de vidro – por cima do material com o líquido, procurando evitar-se as bolhas de ar. A preparação fica pronta para se pôr na placa do microscópio. A lamela evita um contacto directo entre a lente do microscópio e o material, além de evitar o movimento do material.
No caso da película da epiderme de cebola – um material biológico clássico nas aulas de microscopia por permitir observar facilmente as células vegetais –, ela fica “esborrachada” entre a lâmina e a lamela. Se imaginarmos células animais, que, ao contrário das células vegetais, se movimentam, esta dificuldade física ainda tem mais repercussões. E não é só nas observações ao microscópio que este problema pode surgir. As culturas de células nos laboratórios crescem em caixas de vidro e estão assentes nesta superfície rígida, que é muito diferente do contexto dos tecidos animais.
Na investigação liderada por Reto Fiolka, especialista em microscopia da Universidade do Sudoeste do Texas, a equipa tentou comparar as diferentes morfologias observadas pelo novo microscópio em diferentes contextos. “As células de melanoma junto ao vidro exibem morfologias esticadas e com ramificações”, lê-se no artigo, explicando de seguida as diferenças observadas com a nova técnica de microscopia, onde as células não estão em contacto com nenhuma superfície rígida. “As células de melanoma que estão longe de qualquer superfície rija exibem morfologias arredondadas dominadas por pequenas bolhas. Estas observações sugerem que as limitações técnicas da microscopia [no passado] podem ter distorcido muito do nosso conhecimento actual sobre a organização espacial [da célula].”
Em busca do movimento
“O paper [artigo científico] é muito giro”, diz ao PÚBLICO Gabriel Martins, especialista em microscopia do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, que não esteve envolvido neste trabalho. O novo microscópio é um passo em frente em relação a uma técnica que se usa há cerca de uma década, explica o investigador português. A técnica funciona com um laser. “Mas em vez de se iluminar ponto por ponto, varrendo toda a amostra, o laser é transformado numa ‘folha’ e ilumina um plano inteiro de uma só vez”, diz o especialista. “Um plano permite ver o interior da massa de células e até ver o interior das próprias células com grande detalhe.”
A grande diferença do novo modo de estudo é a resolução desta técnica. Antes, as tais “folhas” de laser tinham entre um e dois micrómetros de grossura (um micrómetro é um milésimo de um milímetro). Agora, esta equipa conseguiu observar células com “folhas” de laser com 300 nanómetros de grossura (por isso, a resolução tem aumentado, passando-se de um a dois milésimos de milímetro para 0,3 milésimos de milímetro). Além disso, a equipa conseguiu manter uma massa de células cancerosas vivas no meio de uma matriz de colagénio, para as ver no microscópio.
“Com este alto nível de resolução já é possível ver pequenos detalhes de como as células individuais interagem com outras células vizinhas e como interagem com as fibras de colagénio que estão à volta. E, desta forma, perceber como é que as células exercem forças e contactos sobre o seu meio ambiente quando migram”, adianta Gabriel Martins. “Isto é importante para perceber os mecanismos que levam as células a ‘furar’ por entre outras células e entre as barreiras entre tecidos.” Este movimento das células é fundamental para o desenvolvimento das metástases, em que as células cancerosas saem do local onde se formaram, viajam pela corrente sanguínea e se alojam numa região diferente, onde se multiplicam.
“Há uma prova clara de que o ambiente afecta muito fortemente o comportamento das células – por isso, o valor das experiências de cultura de células em vidro tem de ser pelo menos questionado”, diz Erik Welf, outro investigador da equipa que pertence à Universidade do Sudoeste do Texas, citado num comunicado da Cell Press (editora da Developmental Cell). “O nosso microscópio é uma ferramenta que traz uma compreensão mais profunda dos mecanismos moleculares que governam o comportamento das células cancerosas.”
Para Gabriel Martins, este é mais um passo na evolução recente deste objecto fundamental para a biologia e para o estudo das células. “Os últimos dez anos têm sido incríveis para a microscopia, tem-se feito mais do que nos últimos cem anos em termos de avanços [tecnológicos]”, diz o investigador. “Daqui a dez anos os microscópios de investigação já serão completamente diferentes. Não terão sítio para ver com os olhos, pois serão todos com iluminação laser e captação de imagem digital e reconstrução em tempo real de imagens a três dimensões. É uma mudança de paradigma que levou quase 300 anos desde os tempos em que se viram as células pela primeira vez.”