Uma União Europeia de lordes e de servos
Se o referendo britânico de Junho ditar a saída do Reino Unido, talvez tenhamos uma oportunidade de refazer esta União.
O acordo alcançado na semana passada entre o Reino Unido e os restantes países-membros da União Europeia, que se saldou, segundo a declaração do primeiro-ministro britânico, David Cameron, na atribuição de um “estatuto especial” para o seu país (o Conselho Europeu chama-lhe “a new settlement for the UK within the EU”), constitui mais um prego no caixão da União Europeia, independentemente do resultado do referendo britânico de Junho.
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O acordo alcançado na semana passada entre o Reino Unido e os restantes países-membros da União Europeia, que se saldou, segundo a declaração do primeiro-ministro britânico, David Cameron, na atribuição de um “estatuto especial” para o seu país (o Conselho Europeu chama-lhe “a new settlement for the UK within the EU”), constitui mais um prego no caixão da União Europeia, independentemente do resultado do referendo britânico de Junho.
O acordo veio provar mais uma vez que, no seio da UE, não existe igualdade nos direitos dos Estados-membros e que não existe princípio plasmado nos tratados que não possa ser esquecido ou modificado, se isso for feito para benefício de um país rico e poderoso e para conveniência e reforço interno de um governo de direita.
Mas não é apenas o teor do acordo – que ainda não sabemos se e como será posto em prática – que revela como esta União Europeia está disposta a abandonar algo tão fundamental como o princípio da igualdade entre Estados. Também a forma como a chamada “maratona negocial” decorreu mostrou uma organização opaca, comandada por um directório político clandestino e por uma burocracia de interesses inconfessados. De facto, apesar de a negociação ter sido anunciada – e encenada – como uma discussão aberta entre o Reino Unido (de um lado) e os dirigentes dos restantes 27 Estados da UE (do outro), que certos relatos jornalísticos pretendiam fazer-nos imaginar sentados à mesa em mangas de camisa durante 30 horas de acaloradas discussões e duras trocas de argumentos, o que houve foi uma longa ronda de encontros bilaterais entre os grandes da UE e apenas ocasionalmente com os médios, em que ainda não se conseguiu perceber o que receberam em troca os países que começaram por se opor às pretensões britânicas e que acabaram por as aprovar.
O que é especialmente chocante é que as instâncias dirigentes da UE decidiram ceder à chantagem britânica não porque houvesse de facto algum problema social ou financeiro relevante no país devido à imigração em massa (que a direita nacionalista britânica agita como principal papão e que Cameron decidiu abraçar como causa própria por razões eleitoralistas), mas, simplesmente, porque isso se transformou numa questão de sobrevivência para o Governo conservador.
De facto, não há nenhuma urgência no Reino Unido que possa justificar a medida excepcional agora tomada ou que se possa comparar, de perto ou de longe, à importância da crise das dívidas soberanas dos últimos sete anos e à destruição social e económica causada pelas políticas de austeridade. No entanto, a propósito da Grécia, que continua a viver uma situação de emergência social, ou de Portugal, a União Europeia não sentiu necessidade de considerar para estes países nenhum “new settlement within the EU” e forçou-os a adoptar políticas recessivas e de promoção da desigualdade sem quaisquer contemplações. Como também não sentiu necessidade de adoptar quaisquer medidas vigorosas de defesa dos direitos humanos – que deveriam ser a pedra basilar da União Europeia – perante os desvios antidemocráticos de certos países (com a Hungria de Viktor Orban à cabeça). Como também não sentiu necessidade de lançar (mesmo) um programa de emergência de acolhimento dos refugiados de África e do Médio Oriente e continua a arrastar os pés enquanto o Mediterrâneo se enche de cadáveres. Como também não sente nenhuma pressão para construir uma política externa que sirva os interesses da paz e do desenvolvimento, em vez de uma que apenas serve os interesses hegemónicos dos EUA e dos fabricantes de armamento.
É verdade que os defensores do acordo Reino Unido-UE dizem que não existe qualquer tratamento de favor, porque as medidas de derrogação concedidas ao Reino Unido estarão ao alcance de quaisquer outros Estados nas mesmas circunstâncias (o que será tão difícil de provar como de chegar a acordo sobre o que é o défice estrutural), mas as medidas de reestruturação da dívida e de apoio ao emprego e à economia que se defenderam para Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda ou Itália nunca pretenderam ser medidas excepcionais para cada um destes países, mas sim medidas estruturais que a União Europeia deveria adoptar em todos os casos. A UE, porém, nunca prestou a estas reivindicações – apoiadas em sérios estudos económicos, ao contrário da duvidosa ameaça que os imigrantes colocam às finanças da Segurança Social britânica – a atenção que dedicou desta vez aos queixumes de Cameron.
O que este acordo vem mostrar de forma clara é a necessidade de reformar profundamente a UE, não à medida do Reino Unido e apenas para que Cameron consiga manter-se no poder, mas para podermos construir uma União Europeia diferente, de igualdade e dignidade para todos os Estados e todos os cidadãos, de direitos humanos e cultura, de democracia e desenvolvimento. Para isso será preciso mais do que um conselho europeu com uma falsa maratona negocial. Para isso será preciso partir o molde destes conselhos europeus que apenas reforçam o poder dos directórios. Será preciso fazer um reset completo do sistema.
Se o referendo britânico de Junho ditar a saída do Reino Unido, talvez tenhamos uma oportunidade de o fazer. Bem, desta vez.