A União Europeia em processo de downgrade

Uma pausa no processo de integração europeia pode ser necessária. Não é, em si mesma, nenhuma catástrofe. Pode ser até a única forma de evitar problemas futuros mais graves.

1. Títulos de livros como Why Europe Will Run the 21st Century, de Mark Leonard (Fourth Estate, 2005) ou então Europe as Empire: The Nature of the Enlarged European Union de Jan Zielonka (Oxford University Press, 2007), eram comuns há uma década atrás. Mostram o optimismo, talvez ingénuo ou excessivo, que dominava a década anterior. Hoje fazem-nos sorrir pelo seu desfasamento face à realidade e às perspectivas de futuro para os europeus. Mas esses livros não eram desligados do ambiente político da época. Aliás, são até produto dele. Há pouco mais de uma década atrás, na agenda política europeia, estava a ratificação e entrada em vigor do Tratado Constitucional Europeu (Constituição Europeia). Seria um importante upgrade na integração, rumo a uma União Europeia imbuída de mais mecanismos de inspiração federal. A “união cada vez mais estreita entre os povos europeus”, fórmula consagrada no Tratado de Maastricht de 1993, estava plenamente em marcha. Assim parecia. Hoje é o Brexit – a possível saída do Reino Unido –, a marcar a agenda política. Apesar de um referendo para saída da União Europeia, num Estado desta relevância política e económica, ser uma novidade – o único antecedente é a saída da Gronelândia em 1985 –, a situação de estagnação na integração europeia não é totalmente nova. Olhemos para o passado.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

1. Títulos de livros como Why Europe Will Run the 21st Century, de Mark Leonard (Fourth Estate, 2005) ou então Europe as Empire: The Nature of the Enlarged European Union de Jan Zielonka (Oxford University Press, 2007), eram comuns há uma década atrás. Mostram o optimismo, talvez ingénuo ou excessivo, que dominava a década anterior. Hoje fazem-nos sorrir pelo seu desfasamento face à realidade e às perspectivas de futuro para os europeus. Mas esses livros não eram desligados do ambiente político da época. Aliás, são até produto dele. Há pouco mais de uma década atrás, na agenda política europeia, estava a ratificação e entrada em vigor do Tratado Constitucional Europeu (Constituição Europeia). Seria um importante upgrade na integração, rumo a uma União Europeia imbuída de mais mecanismos de inspiração federal. A “união cada vez mais estreita entre os povos europeus”, fórmula consagrada no Tratado de Maastricht de 1993, estava plenamente em marcha. Assim parecia. Hoje é o Brexit – a possível saída do Reino Unido –, a marcar a agenda política. Apesar de um referendo para saída da União Europeia, num Estado desta relevância política e económica, ser uma novidade – o único antecedente é a saída da Gronelândia em 1985 –, a situação de estagnação na integração europeia não é totalmente nova. Olhemos para o passado.

2. Euroesclerose, euromarasmo. Actualmente são termos que poucos conhecem, ou se lembram. Captavam o impasse na integração europeia dos anos 1970 e primeira metade dos anos 1980. Reflectiam a maneira como a União Europeia dessa época – na altura ainda Comunidades Europeias –, era vista pelos seus contemporâneos. A difusão do termo “euroesclerose” deve-se ao economista alemão Herbert Giersch, influente durante os governos de Willy Brandt e Helmut Schmidt. Usava uma analogia com a medicina. (Também na actual crise os economistas gostam de usar analogias com a ciência médica para explicar os males e as possíveis curas económicas e sociais.) A esclerose designa uma doença crónica com efeitos degenerativos. A analogia é forte. Visava evidenciar os profundos males políticos e económicos de que padeciam as Comunidades Europeias na época. O termo foi comumente usado para designar um período de estagnação na integração europeia. A euroesclerose, ou euromarasmo, durou doze anos. Ocorreu entre 1973 (o ano do choque petrolífero e do alargamento ao Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) e 1985 (o ano de relançamento da integração com o mercado único e o Acto Único Europeu). Apesar de tudo, o actual euromarasmo, iniciado com a crise financeira e económica desencadeada em 2008, "só" dura há oito anos.

3. Há mais analogias com o passado. Com a possibilidade de Brexit, David Cameron está numa posição algo similar à de John Major, no início dos anos 1990, na altura das negociações e entrada em vigor do Tratado de Maastricht. Tal como David Cameron, e apesar da obtenção de condições especiais para os britânicos em certas áreas – como o direito de não adoptar a moeda única –, parte do Partido Conservador viu-as como insuficientes. O episódio de 1993 ficou conhecido como o caso dos “rebeldes de Maastricht”. Membros do Parlamento britânico ligados ao Partido Conservador retiraram apoio ao governo do seu próprio partido liderado por John Major. A situação mais crítica ocorreu na altura de uma série de votações na Câmara dos Comuns sobre a questão da aplicação do Tratado de Maastricht no direito britânico. No actual contexto, vários deputados e ministros vão fazer campanha a favor da saída da União Europeia. Isto contra a posição do Primeiro-Ministro, David Cameron. Entre eles, o influente Ministro da Justiça, Michael Gove. Entre eles também, Boris Johnson, o mayor de Londres, que lidera agora “os rebeldes do Brexit”. A sua revolta é um misto de defesa da soberania, de eurocepticismo e de oportunismo político. Ambiciona suceder a David Cameron na liderança do partido e do governo. Tal como nos anos 1990, as feridas podem ser profundas para o governo dos conservadores e para a sua liderança. Mas a situação é hoje politicamente mais complexa e tensa. Para além de uma possível saída da União Europeia, a reivindicação secessionista da Escócia continua latente.

4. Uma pausa no processo de integração europeia pode ser necessária. Não é, em si mesma, nenhuma catástrofe. Pode ser até a única forma de evitar problemas futuros mais graves. A União Europeia precisa de consolidar o duplo processo de tratados e alargamentos, iniciado em Maastricht, há mais de vinte anos atrás. O problema é que, em vez da “união cada vez mais estreita entre os povos europeus", está a surgir uma união cada vez mais frouxa, quezilenta e bastante egoísta. A crise da Zona Euro fez saltar a tampa dos ressentimentos nacionalistas do passado. As profundas divisões europeias sobre o acolhimento dos refugiados originaram um downgrade à livre circulação no interior da União. Há, cada vez mais, excepções ao sistema de Schengen num crescente número de Estados. O que deveria ser excepcional está a tornar-se o novo normal. Ocorre em áreas simbólicas da construção europeia. A derrogação, ainda que temporária, de regras que estão no cerne do processo de integração europeia, mostra o problema. Pode desencadear uma espiral desintegradora. Importa recordar que o mercado único e as suas quatro liberdades fundamentais – circulação de bens, serviços, capitais e pessoas, às quais acresce o direito de estabelecimento –, integram o núcleo histórico da construção europeia. São um trabalho laborioso de décadas de integração. A questão é acentuada pela possibilidade de, pela primeira vez, um Estado-membro abandonar a União Europeia. O referendo britânico permitirá clarificar o futuro da integração europeia surgida como resposta às tragédias do século XX.

Investigador