Igualdade na lei – o perfume dos heróis desconhecidos
O fim da discriminação em função da orientação sexual não acaba com o quase ponto zero legal que a proíbe.
No dia 19 de fevereiro, após um veto político ultrapassado, finalmente foi promulgado o diploma que acaba com a discriminação no acesso à adoção por casais do mesmo sexo. Celebrou-se. Estamos quase no chamado ponto zero das discriminações legais fundadas na orientação sexual. Celebrou-se.
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No dia 19 de fevereiro, após um veto político ultrapassado, finalmente foi promulgado o diploma que acaba com a discriminação no acesso à adoção por casais do mesmo sexo. Celebrou-se. Estamos quase no chamado ponto zero das discriminações legais fundadas na orientação sexual. Celebrou-se.
Na celebração há um sentimento contraditório. Estão cá, no dia 19 de fevereiro, os que estiveram do lado justo da história. Estão cá, no dia 19 de fevereiro, em pleno ano de 2016, os que ainda têm por opinião pessoal diferenciar pessoas no acesso a direitos fundamentais em função da orientação sexual, quando não se atreveriam, certamente, a ter por opinião pessoal diferenciar pessoas em função da sua etnia.
Não está cá uma multidão de heróis desconhecidos, gente a quem foi dito que sofriam de uma patologia, gente a quem foi dito que a revolução dos cravos não os incluía, gente a quem foi dito que eram criminosos, em plenos anos oitenta, na letra da lei, gente a quem foi dito que a sua perversão era uma inaptidão para o serviço militar, gente a quem foi dito que deixaram de ser patológicos apenas em 1992, gente apelidada de psicopata pelo que fora do acesso à PSP.
Tudo isto foi dito a uma multidão pelo Estado.
Uma multidão de gays e lésbicas com histórias pessoais ultrajantes de discriminação, na cidade, no trabalho, na família, vetada à invisibilidade, empurrada para o mundo do furtivo, apagada com o rótulo do pecado, gente com medo fundado, medo de ser, medo de existir.
Uma multidão de gente que hoje é o perfume heroico da espera demasiado longa, ainda assistindo a resistências sem vergonha dos olhos que no futuro confrontarão essas resistências. Ainda assistindo aos que lutaram e lutam pela desigualdade com o mesmo fervor que tiveram no repúdio da lei das uniões de facto mais inclusiva de 2001, no repúdio pelo acesso ao instituto laico do casamento por todas e por todos, reservando o direito como um privilégio moral e padronizado, no repúdio pela homoparentalidade em tempos de debate datado, pisando crianças existentes, tudo em nome de uma opinião pessoal.
O fim da discriminação em função da orientação sexual não acaba com o quase ponto zero legal que a proíbe. Mas começa por aí. Até lá, os gays e as lésbicas que sofreram e que sofrem na pele a sua negação, os gays e as lésbicas que já morreram e não viram estes dias, o meu colega de 18 anos que não aguentou o desamor da família e escolheu a morte, tinham no Estado um cúmplice ativo da discriminação social e moral selvaticamente a pesar sobre uma multidão de heróis anónimos cujo perfume deve, hoje, espalhar-se por toda a parte.
Deputada do PS