Estrangeiros muitas vezes expulsos sem acesso a advogado “em tempo útil”

Autoridades cabo-verdianas denunciaram ao PÚBLICO caso de um sem-abrigo com “perturbação psíquica” que vivia em Portugal desde criança e que foi recambiado "com a roupa do corpo". Lei de estrangeiros de 2012 passou a permitir a expulsão mesmo quando as pessoas nasceram cá ou têm cá filhos.

Foto
Daniel Sousa Varela nunca esteve em Cabo Verde. Está preso, tem pendente um processo de afastamento coercivo. Rui Gaudêncio

Muitos estrangeiros detidos que aguardam expulsão administrativa de Portugal não conseguem ter, “em tempo útil”, acesso a um advogado que os ajude a contestar a decisão, refere o jurista do Serviço Jesuíta aos Refugiados, João Lima, com base na experiência de um centro do Porto onde são detidas pessoas que aguardam "afastamento coercivo" do país. Desde 2012 passou a poder ser expulso de Portugal mesmo quem cá tenha nascido, quem aqui viva desde idade inferior a dez anos ou quem cá tenha filhos menores, desde que ponha em causa “a segurança nacional ou a ordem pública.”

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Muitos estrangeiros detidos que aguardam expulsão administrativa de Portugal não conseguem ter, “em tempo útil”, acesso a um advogado que os ajude a contestar a decisão, refere o jurista do Serviço Jesuíta aos Refugiados, João Lima, com base na experiência de um centro do Porto onde são detidas pessoas que aguardam "afastamento coercivo" do país. Desde 2012 passou a poder ser expulso de Portugal mesmo quem cá tenha nascido, quem aqui viva desde idade inferior a dez anos ou quem cá tenha filhos menores, desde que ponha em causa “a segurança nacional ou a ordem pública.”

Está previsto que a resposta ao pedido de apoio judiciário – nomeação de um advogado pelo Estado quando a pessoa não tem meios económicos para pagar a um leve 30 dias, explica o jurista. Mas as respostas da Segurança Social chegam a demorar 60, diz. “Demoram muito tempo e às vezes não chegam”, nota o jurista. Muitas pessoas são, entretanto, expulsas do país.

O Serviço Jesuíta aos Refugiados começou, no início do ano passado, a fazer “um diagnóstico à legalidade dos afastamentos coercivos e às condições das detenções” na chamada Unidade Habitacional de Santo António, centro de detenção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) onde esta instituição presta apoio. Ainda não tem resultados. Também existem centros de detenção nos aeroportos internacionais de Lisboa, Porto e Faro. Pode ser expulso do país o estrangeiro que se encontre em situação irregular ou que tenha cometido crimes.

O Serviço Jesuíta de Refugiados já tinha alertado para o problema das falhas no apoio jurídico num parecer enviado ao anterior Governo, a propósito da alteração da lei de estrangeiros de 2012. Aí se referia que o prazo máximo de detenção administrativa previsto na lei é de 60 dias, mas que a média da detenção rondará os 20 dias, e que “durante o período de detenção o apoio por parte de advogados oficiosos é muito escasso ou até mesmo inexistente”. Uma afirmação que continua actual, reforça o jurista.

A presidente da Associação Luso-Caboverdiana de Sintra, Rosa Moniz, tinha já dito ao PÚBLICO, num artigo sobre este assunto que “a fragilidade [das pessoas que estão para ser expulsas] está em não terem capacidade para responderem ao SEF. Às vezes, as situações podiam reverter-se se tivessem advogado. O advogado oficioso não faz nada”, notando que "a lei actual veio facilitar muito as expulsões”.

A associação Solidariedade Imigrante chegou mesmo a propor “a criação de um gabinete sem encargos financeiros para o imigrante na zona internacional dos aeroportos, tutelado pela Ordem dos Advogados em parceria com organizações da sociedade civil.”

Numa reportagem do PÚBLICO em Cabo Verde, publicada no domingo, representantes das autoridades cabo-verdianas revelaram que o país tem recebido alguns casos de cidadãos expulsos de Portugal que viviam em Portugal desde crianças, e mesmo de “pessoas [expulsas] que nunca estiveram [em Cabo Verde]. Responsáveis do Ministério das Comunidades denunciaram "situações desumanas" na forma como Portugal faz as deportações.

A ministra das Comunidades, Fernanda Fernandes, contou o caso de um sem-abrigo encontrado nas ruas do Estoril pelo SEF que foi deportado ainda com a pulseira do departamento de Psiquiatra do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde esteve internado um mês antes de ser enviado para Cabo Verde “só com a roupa do corpo”. O seu relatório médico dizia que tinha sofrido “episódio depressivo severo com sintomas psicóticos”, adiantou Nádia Marçal, responsável, naquele ministério, pelo dossier do “Retorno Involuntário” no arquipélago africano. Tinha nascido em São Tomé e Príncipe e ido para Lisboa em criança. Quando chegou à Praia, depois de ter sido expulso de Portugal, não conseguiu identificar quaisquer familiares em Cabo Verde.

O PÚBLICO contou também a história de Daniel Sousa Varela, um recluso de 27 anos que está no Estabelecimento Prisional de Setúbal, condenado por furto. Nasceu em Setúbal e tem na cidade duas filhas portuguesas menores, uma de três e outra de oito anos. Foi-lhe aberto um processo de afastamento coercivo, ainda sem decisão de expulsão. Daniel chegou a ter bilhete de identidade português. Nunca esteve em Cabo Verde.

A lei de estrangeiros de 2007 previa que não podiam ser expulsos de Portugal os cá nascidos, quem aqui vivesse desde antes dos dez anos e quem tivesse “a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa ou estrangeira, a residir em Portugal", sobre os quais exercessem efectivas responsabilidades parentais e a quem assegurassem "o sustento e a educação”. A lei mudou em 2012, por iniciativa do Governo de coligação PSD/CDS.

A legislação em vigor diz que podem ser expulsos mesmo os que se encontrem naquelas situações, desde que esteja em causa “atentado à segurança nacional ou à ordem pública”, que a pessoa “constitua ameaça aos interesses ou à dignidade do Estado Português” ou que haja “fortes indícios da prática de factos puníveis graves ou de que tenciona praticar tais factos”.

O director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, tinha dito ao PÚBLICO que “há sempre uma ponderação” tendo em conta as ligações da pessoa ao país, mas que as excepções à expulsão “permitiam situações-limite insustentáveis, em que pessoas nascidas em Portugal podiam ter cometido crimes gravíssimos contra a segurança interna e não podiam ser expulsas”. No caso de expulsos com filhos portugueses, nota que “há famílias desestruturadas, situações de violência doméstica”. A unidade familiar não é um princípio absoluto, sublinha.

João Lima conta que o Serviço Jesuíta aos Refugiados teve conhecimento, durante o ano passado, de sete pessoas do centro de detenção do Porto que iam ser expulsas e que, ao abrigo da lei anterior, seriam, em princípio inexpulsáveis. Nesse ano atendeu um total de 153 pessoas. Quatro deles contaram ter filhos menores em Portugal, dois ter filhos e, ao mesmo tempo, viverem no país desde idade inferior a dez anos e num outro caso era uma pessoa que também cá vivia desde criança.

Na altura da mudança da lei várias entidades ouvidas pelo Governo colocaram dúvidas em relação à criação dos limites à inexpulsabilidade.

O Conselho Superior do Ministério Público, órgão que representa os magistrados do Ministério Público, defendia que o poder de decidir a expulsão de um  cidadão, quando está em causa avaliar “quem atenta contra a segurança nacional ou a ordem pública”, deveria ser “reserva de juiz” e não caber “a uma entidade administrativa”, e que tal contrariava mesmo a Constituição. Na lei que entrou em vigor em 2012 esta é uma competência do director do SEF.

A Ordem dos Advogados, no parecer à proposta de alteração da lei, considerava que “a necessidade de prova de que se exerce o poder paternal, assegurando-se o sustento e a educação dos descendentes” era “uma obrigação de tal forma difícil de obter que, na prática, podia fazer com que a pessoa fosse expulsa mesmo tendo filhos menores portugueses ou estrangeiros a residir em Portugal.” E ia mais longe, dizendo: “Essa obrigatoriedade probatória, nem sempre fácil de realizar em tempo útil, é um manifesto impedimento ao direito de reunião de cada cidadão com a sua família”. Para a Ordem dos Advogados, deveria bastar “o estabelecimento da determinação da filiação, sem grandes exigências suplementares”.

A advogada Susana Alexandre, que tem defendido vários casos de reclusos expulsos administrativamente pelo SEF, apesar de o juiz não lhes ter aplicado a pena de expulsão, conta que “as ordens de expulsão [do SEF] falam dos seus antecedentes criminais e três linhas a dizer que não exercem o poder paternal”. “Parece óbvio que não pode ser entendido literalmente, eles estão na cadeia.”

“Até 2012, havia boa vontade”, nota, dizendo que “enviava para o SEF certidões de nascimento dos filhos e comprovativos de visitas aos pais todos os domingos à prisão. Cheguei a mandar poemas e desenhos do Dia do Pai, a provar ligação. Agora isso já não chega.”

O PÚBLICO pediu ao SEF dados sobre o número de pessoas expulsas administrativamente do país desde 2012 nascidas em Portugal, cá residentes desde antes dos dez anos e que cá deixaram filhos menores. Não obtivemos, até ao fecho da edição, qualquer resposta.

As expulsões administrativas representaram 65% do total dos 402 afastamentos coercivos levados a cabo pelo SEF em 2014, número que tem vindo a diminuir nos últimos anos, acompanhando o decréscimo da vinda de imigrantes. O país para onde Portugal mais deporta é o Brasil, logo seguido de Cabo Verde.