Praça das Flores, uma jóia de Lisboa, vai mudar de figura
Lisboa vai ter um pequeno edifício de habitação projectado por Souto de Moura. A sua aprovação pelo vereador do Urbanismo contrariou pareceres dos seus serviços. As mesmas normas que servem a uns para rejeitar o projecto, servem a outros para o aprovar.
O vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa, Manuel Salgado, aprovou no Verão passado um projecto do arquitecto Souto de Moura que vai romper a homogeneidade de um dos mais apreciados espaços públicos da cidade — a Praça das Flores, entre o Palácio de São Bento e o Príncipe Real. “A arquitectura, como qualquer das outras artes, tem esta espantosa característica de, perante uma intervenção, podermos ter vários olhares e todos eles válidos.” Foi assim que o director municipal de Urbanismo justificou a proposta de aprovação, rejeitando o indeferimento defendido pelos seus serviços.
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O vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa, Manuel Salgado, aprovou no Verão passado um projecto do arquitecto Souto de Moura que vai romper a homogeneidade de um dos mais apreciados espaços públicos da cidade — a Praça das Flores, entre o Palácio de São Bento e o Príncipe Real. “A arquitectura, como qualquer das outras artes, tem esta espantosa característica de, perante uma intervenção, podermos ter vários olhares e todos eles válidos.” Foi assim que o director municipal de Urbanismo justificou a proposta de aprovação, rejeitando o indeferimento defendido pelos seus serviços.
O projecto assinado por Souto de Moura, o segundo arquitecto português a ser galardoado com prémio Pritzker, a seguir a Siza Vieira, assemelha-se fortemente a um outro do mesmo autor já construído na Rua do Teatro, no Porto. Trata-se, no caso de Lisboa, de um edifício de habitação de cinco pisos, cuja construção obrigará à demolição do prédio de rés-do-chão e primeiro andar, com águas furtadas, actualmente existente.
De acordo com a memória descritiva do projecto, o edifício a demolir encontra-se “em elevado estado de degradação” e “é dissonante da envolvente, não tendo qualquer tipo de classificação oficial e não representando nenhum testemunho importante da história da Arquitectura Portuguesa”. Já o edifício aprovado pela câmara terá, nas palavras de Souto de Moura, “uma linguagem arquitectónica actual, fazendo a ligação com a escala dos edifícios vizinhos, através da diferenciação entre os dois volumes propostos, com diferente largura, altura e profundidade dos vãos”.
O arquitecto acrescenta que “também o material de ensombramento, lâminas de alumínio e tela de rolo exterior se propõe diferenciado para garantir uma inserção com a escala da rua”. Exteriormente, para lá do vidro a toda a largura da fachada e do alumínio, os materiais mais visíveis serão os perfis de ferro que revestirão a estrutura de betão armado e que tentam “recuperar as varandas metálicas do século XIX”.
Serviços queriam indeferir
Contrariamente ao autor do projecto, a apreciação técnica do Departamento de Projectos Estruturantes da câmara sustenta que o prédio existente não representa qualquer dissonância no contexto da praça, mas que ela será introduzida pelo edifício proposto. “Não estando em causa a qualidade do projecto apresentado, com volumetria e altura de fachada que não ultrapassam a média das alturas da frente edificada, considera-se que o desenho proposto para o alçado, o último piso recuado, as dimensões e características dos vãos e dos dispositivos de ensombramento, assim como as varandas reentrantes, não possuem qualquer relação com a linguagem arquitectónica dos edifícios confinantes, nem referências nas composições arquitectónicas dominantes no conjunto da Praça das Flores em termos morfológicos e tipológicos”, lê-se na informação técnica que obteve a concordância do chefe de divisão e do director de departamento.
De igual modo, os serviços camarários divergem de Souto de Moura, quando este afirma, para defender a demolição do actual edifício (nºs de polícia 10 a 12), que ele não tem “nenhuma característica morfológica ou elemento singular que o distinga”. Pelo contrário, defendem a arquitecta autora da informação e as chefias intermédias. O edifício em questão “possui características arquitectónicas com relevância tais como a composição simétrica, a trapeira com grande presença, o beirado à portuguesa, os cunhais de pedra, os vãos de sacada com varanda, etc,, que garantem uma integração equilibrada no conjunto homogéneo das edificações que definem urbanisticamente a Praça das Flores”.
A nova construção aprovada por Manuel Salgado ocupará não só a área de implantação do edifício a demolir (157 m2), como o pequeno logradouro anexo, separado do passeio por um muro com duas falsas portas emparedadas, sendo o rés-do-chão afecto à entrada e garagem. Nos pisos superiores será criado um T1 e dois T2, um dos quais ocupará também o último piso (recuado). Ao invés dos restantes edifícios da rua, este não terá telhados, sendo as coberturas “revestidas a mosaico hidráulico à cor da telha, de modo a garantir a continuidade com as coberturas características da cidade de Lisboa”.
Avaliando globalmente o projecto de Souto de Moura, a técnica responsável pela sua apreciação concluiu que, “não se questionando a contemporaneidade e o interesse da solução proposta, com capacidade para se relacionar e qualificar outros contextos urbanos [aludindo provavelmente ao difício da Rua do Teatro], não se consideram reunidas as condições para a valorização arquitectónica e urbanística da área e do conjunto edificado em que se integra, contrariando-se o disposto no nº 1 do artº 42º do Plano Director Municipal”.
De acordo com este preceito do PDM, “as obras de construção, ampliação e alterações têm que se enquadrar nas características morfológicas e tipológicas dominantes no arruamento em que o edifício se localiza e contribuir para a respectiva valorização arquitectónica e urbanística”.
Atendendo não só a este incumprimento, mas também a outros relativos, designadamente, a alinhamentos de pisos e vãos com os edifícios confinantes, ocupação do logradouro e requisitos da admissibilidade de demolições, a mesma técnica propôs a não aprovação do projecto, obtendo a concordância dos seus superiores imediatos.
PDM serve para indeferir e aprovar
Já o Director Municipal de Urbanismo, Jorge Catarino Tavares, no topo da hierarquia, vê a questão por outro prisma, estribando-se exactamente no mesmo nº 1 do artº 42º do PDM, e noutros em que os seus serviços basearam a proposta de indeferimento, para propor a aprovação. “É uma solução interessante e original em intervenções recentes, que se socorre de uma tipologia pouco comum mas conhecida da cidade; enquadra-se na volumetria da praça; constitui uma valorização arquitectónica e urbanística da praça; e consegue manter o plano de alinhamento das fachadas (...)”, considera o director municipal.
Catarino Tavares sustenta igualmente que o edifício existente constitui uma “excepção” na praça em termos volumétricos e que, dada a sua dimensão, “a ampliação só o iria descaracterizar”. Por outro lado, acrescenta, “a sua simples recuperação, com eventual alteração do corpo adjacente, não altera, mas também não requalifica a frente urbana”. Quanto a esta hipótese, afirma que se trata de “uma solução possível mas pouco provável, pois não estamos perante uma adaptação às actuais exigências mediante um investimento razoável face ao seu valor patrimonial”.
O director municipal observa que a proposta “foi bastante debatida” na Comissão de Apreciação Conjunta criada pela câmara e pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que foi chamada a pronunciar-se devido ao local se situar na Zona de Protecção Especial do Bairro Alto, classificado como Conjunto de Interesse Público. No entanto, refere, “após algumas alterações foi aceite”, por se entender que ela é “em termos de volume e escala, adaptada à situação da praça”.
Face à contradição entre esta leitura e a do Departamento de Projectos Estruturantes, o despacho de Catarino Tavares, sob a forma inabitual de “informação” dirigida ao vereador, realça que sobre uma mesma obra arquitectónica é possível haver “vários olhares e todos eles válidos”. Referindo-se concretamente ao projecto de Souto de Moura, acrescenta: “Se partirmos do princípio que o edifício existente e o corpo anexo são relevantes no contexto da praça, então a análise efectuada pelos serviços é coerente e, efectivamente, não se verificam algumas das condições colocadas pelo PDM, Se, por outro lado, entendemos que, pese embora o edifício existente date da mesma altura da maioria dos edifícios da praça e possua uma composição coerente, mas que não é relevante na composição da praça e tão somente de acompanhamento, então esses factos não são condição necessária e suficiente que justifiquem, de per si, a sua manutenção ou recuperação”.
No mesmo dia 20 de Julho do ano passado em que o director municipal propôs a aprovação do projecto, Manuel Salgado assinou o respectivo despacho de aprovação, sem nada acrescentar à “informação” de Catarino Tavares.
A favor e contra
Favorável à decisão camarária de aprovar o projecto, mostra-se Ana Vaz Milheiro, professora de arquitectura. “Há uma quebra com o que a praça possa aparentar, mas em relação ao que lá está é um ganho”, afirma. Há situações em que a demolição “se reveste de perda de valor” para a cidade. Neste caso, porém, “apesar de ser um edifício antigo, isso não acontece”.
Na opinião da também crítica de arquitectura do PÚBLICO, além de ser assinado por um grande arquitecto, o projecto do edifício a construir “é bem desenhado, as proporções são correctas e não vai mudar as características do lugar”. Ana Vaz Milheiro sustenta que o projecto “não é agressivo, nem intrusivo” em relação à envolvente. “Não destrói nenhum valor patrimonial existente, é uma proposta culta”.
A arquitecta admite que o facto de se tratar de “uma linguagem assumidamente contemporânea”, de “uma arquitectura de lajes e de superfícies”, pode “chocar o senso comum”, mas afirma que “daqui a 20 anos será bem assimilada”. O que Souto de Moura não faz, considera a crítica, “é imitar” o que está ao lado. “É uma posição ideológica em relação ao património. Ele assume que é uma arquitectura contemporânea, mas tem a sensibilidade de manter a escala do que ali está”.
Do outro lado da barricada, encontra-se Fernando Jorge, arquitecto e membro do movimento Fórum Cidadania Lisboa. Sem questionar “a competência e qualidade do projectista, assim como do projecto de arquitectura enquanto ‘objecto de arte contemporânea’”, Fernando Jorge manifesta-se abertamente contra “a forma como este tipo de proposta de intervenção na ‘cidade histórica’ é tratado pelo pelouro do Urbanismo da Câmara de Lisboa e pela DGCP”.
Se o PDM e a Lei do Património aceitam a “cidade histórica” como valor colectivo, “porque razão a câmara e a DGPC aprovam cada vez mais a demolição destes edifícios” com base em ”julgamentos de valor”?, questiona. “Será uma espécie de inquisição do gosto? E quem decide o gosto para a arquitectura na cidade?”
No seu entender, “estes edifícios que estão a desaparecer são anónimos e é por isso mesmo que são importantes — porque nos definem”. Trata-se de edifícios “tão significativos como os ‘monumentos’ na caracterização da nossa cultura arquitectónica e urbanística.” Comentando a o facto de o director municipal afirmar que “podemos ter vários olhares e todos eles válidos”, Fernando Jorge pergunta: “É este o critério usado para justificar o injustificável e legalizar o ilegal? Face ao valor colectivo, face aos pareceres internos da câmara de não aprovação, as chefias decidem que pode ser aprovado porque têm esse ‘olhar’ iluminado?”
O actual proprietário do lote é a sociedade imobiliária Greenparrot, controlada por Henry Youssef Chedid, um importante homem de negócios e político libanês de 82 anos, que, juntamente com um filho, está a desenvolver vários projectos imobiliários em Portugal.