Guimarães-Carrilho: a perda da justiça
1. O caso Guimarães-Carrilho mal avançou nos tribunais mas a justiça portuguesa já foi prejudicada. E pelo menos duas coisas deviam acontecer, para travar mais danos: a juíza Joana Ferrer ser afastada do processo em que Bárbara Guimarães acusa Manuel Maria Carrrilho por violência doméstica; o Estado reconhecer que não se assegurou protecção ao filho de 12 anos, cujas declarações, no processo de regulação do poder paternal, foram parar a “revistas”. Cabe aos tribunais julgar a acusação, bem como decidir a regulação. Não vou falar aqui, nem poderia, das razões de cada parte, apenas da actuação da justiça.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. O caso Guimarães-Carrilho mal avançou nos tribunais mas a justiça portuguesa já foi prejudicada. E pelo menos duas coisas deviam acontecer, para travar mais danos: a juíza Joana Ferrer ser afastada do processo em que Bárbara Guimarães acusa Manuel Maria Carrrilho por violência doméstica; o Estado reconhecer que não se assegurou protecção ao filho de 12 anos, cujas declarações, no processo de regulação do poder paternal, foram parar a “revistas”. Cabe aos tribunais julgar a acusação, bem como decidir a regulação. Não vou falar aqui, nem poderia, das razões de cada parte, apenas da actuação da justiça.
2. Guimarães e Carrilho estão separados desde 2013, e têm dois filhos menores. A primeira sessão do processo em que ela o acusa por violência doméstica foi a 12 de Fevereiro. Segundo a Visão (repórter Teresa Campos), a juíza Joana Ferrer começou por dirigir-se assim ao réu: ‘Senhor professor, vou pedir-lhe para ficar junto do microfone.’” Carrilho indica nome, idade, etc, depois a juíza diz: “Sabe, senhor professor, os juízes também fazem trabalho de casa. Fui ler o prefácio que escreveu para o livro de Gilles Lipovetsky. Fiquei a saber que é um homem bem falante, capaz de articular. Quer falar dos factos que aqui o trazem?” Carrilho sorri e declina falar “de momento”. A juíza chama Bárbara Guimarães: “Lembre-se que não presta juramento mas o tribunal espera de si a verdade. O que me pode relatar sobre o desfecho do seu casamento?” Esta diferença de tratamento continua por toda a sessão, com a juíza a tratar a queixosa por “Bárbara” e o réu por “professor” ou “senhor professor”.
Excertos relevantes do interrogatório a Bárbara Guimarães (repórter Andreia Sanches, PÚBLICO):
— “‘Confesso que estive a ver fotografias do vosso casamento’, disse Joana Ferrer, e tudo parecia maravilhoso. ‘Parece que o professor Carrilho foi um homem, até ao nascimento da Carlota [a segunda filha do casal], e depois passou a ser um monstro.’ Ora ‘o ser humano não muda assim’.”
— “Por que razão não ia ao hospital quando era agredida e deixou a situação arrastar-se? ‘Não fui ao hospital por vergonha’, disse Bárbara Guimarães. A juíza lamentou o facto de, assim, ser difícil provar que houve violência doméstica.” A queixosa disse que também tinha medo. “Medo e vergonha. ‘Os filhos, o facto de sermos duas figuras públicas... Nunca imaginei, nunca, dizer a alguém que ele me batia.’ E acrescentou, mais tarde: ‘Ele não vai parar enquanto não me destruir.’”
— “‘Não tem que justificar ao tribunal por que é que não foi ao médico. Ninguém a pode censurar’, disse a certa altura a procuradora do Ministério Público.” Mas a juíza contrapôs: “‘Causa-me impressão a atitude de algumas mulheres’ vítimas de violência, algumas das quais ‘acabam mortas’. E acrescentou: ‘A senhora procuradora diz que não tem que se sentir censurada. Pois eu censuro-a!’”.
Outros excertos (Visão):
— “‘Mas não foi ao hospital? Porquê? Vou dizer-lhe uma coisa: é a primeira vez que há perícias feitas a fotografias. E digo-lhe: vale zero. Vá, descreva-me mais situações’.” Bárbara Guimarães diz: “É que isto é tão duro!’” A juíza insiste. “Isto é um tribunal criminal. Descreva lá mais...” E de novo: “‘Mas nunca pensou ir ao hospital?’; ‘Não, tive vergonha’; ‘Com tanta divulgação, tanto apoio que se criou para a violência doméstica? Tenha paciência, esse argumento é fraquinho.’” E mais adiante: “Ó Bárbara, causa-me nervoso ver mulheres informadas a reagirem assim. Se tinha fundamento, devia ter feito queixa.”
— A sessão acaba com a juíza a dizer: “E eu a pensar que o senhor professor ainda ia falar comigo hoje…”
3. Não é preciso estudar direito para saber que um juiz 1) deve tratar com igual cortesia homem, mulher, preto, branco, catedrático ou analfabeto 2) não tem de fazer comentários extra-processo sobre o prefácio do réu (ou do queixoso) 3) não pode extrapolar nada sobre a evolução de um casamento vendo as fotos desse casamento 4) não deve insistir de modo repreensivo com alguém que se queixa de violência sobre por que não foi ao hospital quando a pessoa já respondeu 5) muito menos fazer questão de a censurar por não se ter queixado antes. Que uma juíza possa actuar desta forma preconceituosa, classista, machista, sendo reverencial com o réu, catedrático, e sobranceira com a queixosa, apresentadora de TV, é grave para o caso; revela total alheamento em relação à realidade da violência doméstica, em que, por medo, só uma pequena parte se queixa; e total falta de noção do impacto que um caso mediático destes tem, quando o número de mulheres assassinadas e vítimas de violência continua a aumentar.
4. Além da formação inicial, os juízes recebem uma formação contínua que inclui estes objectivos: “Compreensão da vida contemporânea numa perspectiva multidisciplinar; aprofundamento da análise da função social dos magistrados e do seu papel no sistema constitucional; compreensão do fenómeno da comunicação social; o exame de questões de ética e deontologia; uma cultura judiciária de boas práticas”. Cito da lista do Centro de Estudos Judiciários. Podia ser a lista do que já falhou no caso Guimarães-Carrilho. E reconhecer que falhou interessará, antes de mais, a quem contribui para que a justiça funcione. Se esta juíza agiu assim na presença de jornalistas, como agiria, como agirão outros, perante figuras não-públicas? Que pensarão as vítimas de violência que até agora não fizeram queixa? Que quando forem a tribunal serão censuradas por não se terem queixado antes? Joana Ferrer instaurou uma falta de confiança. Justiça que se preze tem de achar isto grave.
5. No dia em que escrevo, quinta-feira, 18, o advogado de Bárbara Guimarães pediu o afastamento da juíza por falta “de imparcialidade objectiva e subjectiva”. O mesmo fez o Ministério Público por considerar existir “motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade”. O Tribunal da Relação de Lisboa tem 30 dias para decidir. A Associação Portuguesa de Mulheres Juristas já emitira um comunicado expressando “preocupação” pela “persistência de pré-juízos desconformes com o legalmente estipulado sobre o modo de agir com vítimas de violência doméstica”. Bons sinais do interior da justiça. Mas, até ao fecho desta crónica, o Conselho Superior de Magistratura, que representa os juízes, não se pronunciou. O advogado da acusação nem apresentou queixa a este orgão. Talvez tenha achado que não valia a pena, que os juízes não criticariam uma par. O facto é que também não criticaram quando o tribunal de Sintra retirou sete filhos pequenos à cabo-verdiana Liliana Melo, sem quaisquer indícios de mau-trato, apenas por ela ser pobre, em vez de a ajudar. E esta semana o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio condenar a justiça portuguesa por isso.
6. Antes de começar a ser julgado o processo em que Guimarães acusa Carrilho por violência doméstica já corria a regulação do poder paternal. Em Janeiro, o filho de 12 anos foi ouvido por três representantes da justiça. Aplicando a lei, uma cópia áudio de tudo, em CD, foi enviada às duas partes, e dias depois as declarações da criança fizeram manchetes de “revistas cor-de-rosa”, em vésperas de começar o julgamento por violência doméstica. Alguém simplesmente entregou uma criança aos leões. Alguém sujo fez isto, e alguém sujo aproveitou. A 4 de Fevereiro, a Procuradoria-Geral da República iniciou a investigação das publicações por crime de “desobediência”, ou seja, porque as “revistas” identificaram o menor, ao arrepio da lei. Mas parece-me que o buraco é bem mais em baixo: a criança foi usada para servir interesses de outros, e a justiça, que a ouviu, não a protegeu disso.
7. Além de ser ouvido, o filho de 12 anos terá pedido ao pai para ter um advogado, e indicado mesmo alguém de um conhecido escritório. O princípio-base em que assenta esta possibilidade, nova no direito português, é salvaguardar a autonomia da criança, em casos em que ela possa ser manipulada por um dos pais. Ora o que aconteceu afinal, foi que, ao aplicar este princípio e ao mesmo tempo dar às partes uma gravação para que elas tivessem direito ao contraditório, a justiça não salvaguardou a criança. Claro que um CD enviado às partes permite espalhar ipsis verbis o que uma criança diz. Para o direito ao contraditório não bastaria comunicar às partes um resumo do essencial? Ou alguma outra forma que dificultasse o vazamento para o exterior? Caberá aos juristas achar soluções. Esta prejudicou uma criança, o princípio-base e a justiça.
8. Sei do que a juíza Joana Ferrer disse pelas reportagens de Andreia Sanches e Teresa Campos, isso é jornalismo, e a diferença que o jornalismo faz numa democracia. As “revistas cor-de-rosa” não fazem parte do jornalismo, não se regem pelas mesmas regras, e era bom que isso ficasse claro. Quem lhes abre a porta terá de ter consciência que a ética ali não é a jornalística. Mas abrir-lhes a porta não antecipa, muito menos justifica, crimes desta natureza. Publicar as declarações à justiça de uma criança de 12 anos é outra fasquia, crime com certeza, e não apenas de desobediência. E, para contrariar “revistas” capazes disto, sugiro o boicote pela não-colaboração. Incluindo ler.