Eco, um cientista social do renascimento
Encontrei-me pela primeira vez com Umberto Eco em Veneza num claustro próximo da igreja de Santa Maria della Salute, do outro lado do canal, em frente à praça de São Marcos. O cenário do encontro recriava na minha mente a célebre vinheta da Fábula de Veneza onde Corto Maltese, o personagem criado pelo seu amigo Hugo Pratt, deambulava pela noite da sereníssima. No entanto, não estávamos em 1921 mas sim em 2000 e estávamos em Veneza não por causa de um dos mistérios que Eco transpunha para as suas novelas mas sim para participar numa conferência. Relembro esse momento porque o ambiente do nosso encontro juntava o passado e as preocupações do presente, sintetizando o rumo que o próprio Eco dava ao seu trabalho de estudioso dos fenómenos comunicativos e apaixonado pela história.
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Encontrei-me pela primeira vez com Umberto Eco em Veneza num claustro próximo da igreja de Santa Maria della Salute, do outro lado do canal, em frente à praça de São Marcos. O cenário do encontro recriava na minha mente a célebre vinheta da Fábula de Veneza onde Corto Maltese, o personagem criado pelo seu amigo Hugo Pratt, deambulava pela noite da sereníssima. No entanto, não estávamos em 1921 mas sim em 2000 e estávamos em Veneza não por causa de um dos mistérios que Eco transpunha para as suas novelas mas sim para participar numa conferência. Relembro esse momento porque o ambiente do nosso encontro juntava o passado e as preocupações do presente, sintetizando o rumo que o próprio Eco dava ao seu trabalho de estudioso dos fenómenos comunicativos e apaixonado pela história.
Umberto Eco estudava o passado para compreender o presente e antecipar o futuro. Por exemplo, para nos explicar os sistemas operativos dos nossos computadores, no ido ano de 1994, Eco dissertava na revista L’Espresso sobre o sistema operativo da Apple ser católico, porque oferecia uma fácil salvação, enquanto o Windows, por ter evoluído do calvinista MS DOS, era anglicano. Essa era a sua marca de análise enquanto cientista social. Era a sua visão do passado que lhe permitia criticar-nos, por exemplo, pelo uso que faziamos da Internet. Nomeadamente, pela nossa incapacidade de continuar a pensar a comunicação como de massas e alertando para que cada vez mais estávamos a criar novos media para os quais não tinhamos mensagens para transmitir. Com Eco, o meio deixou de ser a mensagem, para o meio anteceder a mensagem. Aliás, para Eco o grande desafio para a instituição que estuda a comunicação, a universidade, era conseguir continuar a centrar-se na produção de conceitos e não concorrer com os media na produção de factos – algo que Eco entendia poder ser a “morte” da universidade, porque assim deixaria de conseguir estar anos à frente do que os jornalistas escreviam e os apresentadores de telejornal diziam para interpretar o mundo que os rodeia.
Em 2003 comprei o seu livro Serendipities, Language and Lunacy que continha na capa uma reprodução das Tentações de Santo Antão de Hieronimus Bosch existente no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa ou assim eu o pensava. Uma análise mais atenta do livro fez-me dar com uma nota dizendo tratar-se da mesma obra mas situando-a no Museu de Arte de São Paulo no Brasil. Dado o título do livro escrevi-lhe um e-mail, perguntando-lhe se havia sido uma escolha sua usar uma das cópias da obra de Bosh e não o original. Eco respondeu-me dizendo não ser responsável pela escolha, mas agradecendo a história com ele partilhada. No entanto, nesse mesmo e-mail escreveu também “Caro Senhor, não assinou o e-mail com o seu nome e pareceu-me pouco educado iniciar esta minha mensagem com Caro Galc”, que era o acrónimo do meu endereço de e-mail. Eco era alguém assim, alguém capaz de saltar entre Hieronimus Bosch e a serendipidade da comunicação da Era da Internet, por isso, foi o exemplo máximo de um cientista social com um espirito de homem da renascença.
Professor do ISCTE-IUL