Jornalismo e estupidez
A estupidez é o nosso sintoma. Várias circunstâncias, umas de ordem pessoal, outras ligadas a uma atitude reflexiva sobre as genealogias do presente e sobre o medium jornalístico, levam-me inevitavelmente a falar da estupidez. As críticas, as reservas e até a hostilidade com que os jornalistas e os jornais estão hoje confrontados, à semelhança do que acontece com os políticos, tornam necessário introduzir no interior dos jornais - e com expressão pública – algo que eles só fazem de maneira relutante e para que ninguém oiça: a autocrítica. Esse exercício haveria de chegar à conclusão de que o excesso da opinião – não apenas aquela que integra a secção dos jornais sob esse nome - é o resultado de uma cegueira. Dizendo isto, não posso isentar-me de uma contradição: estas palavras são proferidas na coluna de “opinião” de um jornal e, por isso, fazem-me lembrar uma frase de Wittgenstein: “Ninguém pode dizer de si próprio, com verdade, que é uma porcaria”. Mas gostaria de apresentar um dado importante para reflexão: esse demónio da estupidez já não o sinto quando faço crítica literária ou escrevo artigos que pertencem a outro género. Uma razão, mas não a única, é esta: quando faço crítica não preciso de dizer “Eu”, enquanto aqui o “Eu” acaba sempre por emergir ou espreitar por mais que o evitemos. O “Eu” explícito ou implícito, no jornalismo actual, sob várias formas e não apenas a da opinião, é uma impostura. Deste ponto de vista, este texto já está afectado por aquilo a que chamo estupidez. O tema da estupidez tem uma longa e respeitável tradição literária e filosófica. Flaubert deixou-se fascinar por ela e definiu-a deste modo: “A estupidez [bêtise] é algo de inamovível; nada a ataca sem se quebrar. Ela é da natureza do granito, dura e resistente”. Tal definição ajusta-se plenamente à invenção mais significativa do jornalismo, nos últimos anos: a do colunista que suscita sobretudo o ataque e a hostilidade, a acusação, por uma enorme milícia de leitores, de que é estúpido, ignorante, atrevido. Encontramos esta figura disseminada em todos os jornais, cada um tem o seu exemplar. Quanto mais violentas e ruidosas são as críticas, mais ele se sente robusto e com força para prosseguir. A sua protecção é uma estupidez que, nas suas formas mais eloquentes, faz a exibição hiperbólica e sempre peremptória do princípio da identidade: a política é a política, a dívida é a dívida, e este sou Eu em permanente estado de euforia. Advertência necessária: não estou a chamar estúpido a ninguém, estou apenas a analisar um modo de discurso. Julgo mesmo que, na maior parte dos casos, o teor de estupidez do discurso não corresponde a uma estupidez do indivíduo. O grande erro dos seus detractores está em atacá-lo pelo lado das ideias, da razão e do saber, quando a estupidez do seu discurso está noutro lado: na hipertrofia de um estilo, no dogmatismo do tom, na exibição enfática de processos discursivos primários. Os seus críticos deveriam perceber que há discursos imbecis que só comportam verdades; e há discursos onde tudo está errado mas que são cheios de grandeza, pertinência e inteligência. De resto, a estupidez, tal como aqui a entendo, é de ordem transcendental, o que significa que a sua condição de possibilidade determina também a condição do que é pretensamente inteligente e verdadeiro. E determina outra coisa: atribuir a estupidez a outrem excluindo-se a si próprio é como a lógica do turista para quem só os outros é que são turistas. Tudo isto, que parece exercício de autocrítica, é uma tentativa de estender um espelho para os jornais se olharem criticamente.
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A estupidez é o nosso sintoma. Várias circunstâncias, umas de ordem pessoal, outras ligadas a uma atitude reflexiva sobre as genealogias do presente e sobre o medium jornalístico, levam-me inevitavelmente a falar da estupidez. As críticas, as reservas e até a hostilidade com que os jornalistas e os jornais estão hoje confrontados, à semelhança do que acontece com os políticos, tornam necessário introduzir no interior dos jornais - e com expressão pública – algo que eles só fazem de maneira relutante e para que ninguém oiça: a autocrítica. Esse exercício haveria de chegar à conclusão de que o excesso da opinião – não apenas aquela que integra a secção dos jornais sob esse nome - é o resultado de uma cegueira. Dizendo isto, não posso isentar-me de uma contradição: estas palavras são proferidas na coluna de “opinião” de um jornal e, por isso, fazem-me lembrar uma frase de Wittgenstein: “Ninguém pode dizer de si próprio, com verdade, que é uma porcaria”. Mas gostaria de apresentar um dado importante para reflexão: esse demónio da estupidez já não o sinto quando faço crítica literária ou escrevo artigos que pertencem a outro género. Uma razão, mas não a única, é esta: quando faço crítica não preciso de dizer “Eu”, enquanto aqui o “Eu” acaba sempre por emergir ou espreitar por mais que o evitemos. O “Eu” explícito ou implícito, no jornalismo actual, sob várias formas e não apenas a da opinião, é uma impostura. Deste ponto de vista, este texto já está afectado por aquilo a que chamo estupidez. O tema da estupidez tem uma longa e respeitável tradição literária e filosófica. Flaubert deixou-se fascinar por ela e definiu-a deste modo: “A estupidez [bêtise] é algo de inamovível; nada a ataca sem se quebrar. Ela é da natureza do granito, dura e resistente”. Tal definição ajusta-se plenamente à invenção mais significativa do jornalismo, nos últimos anos: a do colunista que suscita sobretudo o ataque e a hostilidade, a acusação, por uma enorme milícia de leitores, de que é estúpido, ignorante, atrevido. Encontramos esta figura disseminada em todos os jornais, cada um tem o seu exemplar. Quanto mais violentas e ruidosas são as críticas, mais ele se sente robusto e com força para prosseguir. A sua protecção é uma estupidez que, nas suas formas mais eloquentes, faz a exibição hiperbólica e sempre peremptória do princípio da identidade: a política é a política, a dívida é a dívida, e este sou Eu em permanente estado de euforia. Advertência necessária: não estou a chamar estúpido a ninguém, estou apenas a analisar um modo de discurso. Julgo mesmo que, na maior parte dos casos, o teor de estupidez do discurso não corresponde a uma estupidez do indivíduo. O grande erro dos seus detractores está em atacá-lo pelo lado das ideias, da razão e do saber, quando a estupidez do seu discurso está noutro lado: na hipertrofia de um estilo, no dogmatismo do tom, na exibição enfática de processos discursivos primários. Os seus críticos deveriam perceber que há discursos imbecis que só comportam verdades; e há discursos onde tudo está errado mas que são cheios de grandeza, pertinência e inteligência. De resto, a estupidez, tal como aqui a entendo, é de ordem transcendental, o que significa que a sua condição de possibilidade determina também a condição do que é pretensamente inteligente e verdadeiro. E determina outra coisa: atribuir a estupidez a outrem excluindo-se a si próprio é como a lógica do turista para quem só os outros é que são turistas. Tudo isto, que parece exercício de autocrítica, é uma tentativa de estender um espelho para os jornais se olharem criticamente.