O Governo pode demitir o governador do Banco de Portugal?

Estatutos dos bancos centrais prevêem possibilidade de exoneração, mas apenas em caso de “falta grave” e sujeito a recurso legal do governador ou do BCE.

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Administradores do Banco de Portugal são, segundo os estatutos, "inamovíveis" Enric Vives-Rubio

Apesar de fortemente protegido pelo estatuto de independência exigido pelas regras do euro, o governador do Banco de Portugal não está completamente a salvo de uma intenção do Governo de o demitir. No entanto, se quisesse realmente avançar, o executivo teria de estar preparado para passar por uma discussão legal difícil de vencer, um possível conflito aberto com o Banco Central Europeu e um agravamento do risco para a frágil imagem do país nos mercados financeiros.

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Apesar de fortemente protegido pelo estatuto de independência exigido pelas regras do euro, o governador do Banco de Portugal não está completamente a salvo de uma intenção do Governo de o demitir. No entanto, se quisesse realmente avançar, o executivo teria de estar preparado para passar por uma discussão legal difícil de vencer, um possível conflito aberto com o Banco Central Europeu e um agravamento do risco para a frágil imagem do país nos mercados financeiros.

Nos estatutos do Banco de Portugal, aquilo que está estabelecido é que todos os membros do conselho de administração da instituição (incluindo o governador) “são inamovíveis”. Ainda assim, salvaguarda-se que estes podem “ser exonerados caso se verifique alguma das circunstâncias previstas” nos estatutos do BCE. O que os estatutos do Banco Central Europeu dizem sobre essas “circunstâncias” resume-se a uma frase: “Um governador só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave”.

Num relatório publicado pelo próprio BCE em 2005 e em que se analisam alguns dos aspectos legais do funcionamento da união monetária, é feita uma interpretação um pouco mais detalhada. Aí é dito que “os governadores podem ser afastados dos seus cargos apenas se já não cumprem as condições exigidas para o desempenho das suas obrigações, se tiverem sido considerados culpados de uma falta grave profissional ou falta grave no seu cargo, ou se forem considerados culpados de um acto grave, isto é, um acto ou omissão que vá contra a lei”. No entanto, nesse mesmo documento, acaba por se assinalar que “o conceito de ‘falta grave’ não está limitado a uma qualquer lista de actos ou omissões”.

Perante isto, se o Governo decidir mesmo avançar, aquilo que tem de fazer, de acordo com os estatutos do Banco de Portugal, é aprovar a exoneração do governador “por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro das Finanças”. O processo, contudo, caso o governador ou o BCE não concordem com a decisão do Governo, está longe de ficar resolvido. De acordo com os estatutos do BCE, “o governador em causa ou o Conselho do BCE podem interpor recurso da decisão de demissão para o Tribunal de Justiça com fundamento em violação do presente tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação”. Os recursos terão de ser interpostos no prazo de dois meses a contar da decisão do Governo.

Antes de qualquer processo legar, e mesmo antes de qualquer decisão do Governo neste sentido, é muito provável que os responsáveis do BCE, tal como já fizeram no passado, deixassem claro que não estão dispostos a abdicar do estatuto de independência que lhes é concedido pelos tratados europeus. Um conflito aberto entre as autoridades portuguesas e o BCE poderia tornar-se público, com efeitos na imagem do país nos mercados difíceis de calcular.

O caso de Chipre

Perante este nível de protecção de que gozam os governadores dos bancos centrais, não é surpreendente, por isso, que, caso viesse a acontecer, uma decisão de exoneração tomada pelo Governo fosse, nos 17 anos de existência do BCE, um acontecimento inédito.

Ainda assim, um país da zona euro tem estado perto de testar este mecanismo. Em Chipre, quando em 2013 o país entrou em colapso financeiro e todos os seus bancos tiveram de fechar portas, o Presidente Nicos Anastasiades não escondeu a sua insatisfação com o desempenho do governador Panicos Demetriades e mostrou vontade de o demitir, dando mesmo início a investigações criminais que pudessem dar um argumento legal para a exoneração (que na Constituição cipriota é ainda mais difícil de justificar).

Nessa altura, o BCE reagiu com mostras públicas e certamente privadas de desagrado. E uma vez que o sistema bancário cipriota estava na altura completamente dependente do banco central, os argumentos de Draghi e os seus pares revelaram-se bastante fortes. Ainda assim, sujeito a uma pressão constante, Panicos Demetriades acabou mesmo por tomar a iniciativa de sair pelo próprio pé, um ano a seguir ao início da crise, em Março de 2014, alegando motivos pessoais e desentendimento com os outros membros do conselho de administração do banco.

A nova governadora, contudo, também não escapou a problemas. Desde o início do ano passado que Chrystalla Georghadji tem estado sob pressão do Governo para sair. Mais uma vez perante o claro descontentamento do BCE, têm sido recorrentemente noticiados diversos passos de uma investigação criminal relacionada com eventuais conflitos de interesse da governadora. A filha de Chrystalla Georghadji é advogada do ex-CEO do Banco Laiki, a instituição que foi à falência em 2013, desencadeando uma crise profunda no país. Para já, a governadora garante que não se irá demitir.