Uma fotografia “assombrosa” e mais um português premiado no World Press Photo 2015
O maior concurso de fotojornalismo do mundo foi dominado pela crise dos refugiados. A imagem do ano encontra-os, de madrugada, na fronteira entre a Sérvia e a Hungria. Mário Cruz, fotógrafo da agência Lusa, ganhou um dos primeiros prémios.
É uma fotografia a preto e branco, cheia de grão e com pouco contraste. A falta de luz é testemunha da precariedade da situação – dois refugiados na fronteira entre a Sérvia e a Hungria fazem passar um bebé pelo buraco na vedação de arame farpado.
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É uma fotografia a preto e branco, cheia de grão e com pouco contraste. A falta de luz é testemunha da precariedade da situação – dois refugiados na fronteira entre a Sérvia e a Hungria fazem passar um bebé pelo buraco na vedação de arame farpado.
Warren Richardson, o fotógrafo australiano que com esta imagem acaba de receber o prémio principal do World Press Photo 2015, acompanhava havia horas um grupo de 200 pessoas que tentavam atravessar a fronteira e que tinham passado toda a noite a fugir da polícia. Não podia usar flash, porque se o fizesse denunciaria os refugiados. Eram três da manhã e só a lua lhes permitia ver onde punham os pés. Richardson tinha passado os últimos dias acampado ali, entre os refugiados.
“Eles mandaram as mulheres e as crianças primeiro, depois os homens com filhos e os mais velhos. Devo ter estado com este grupo umas cinco horas. Passámos a noite toda a brincar ao gato e ao rato com a polícia”, disse Richardson, um freelancer que tem a Hungria por base, quando explicou em que circunstância fez aquela que é agora a Fotografia do Ano 2015, segundo o júri do mais importante concurso de fotojornalismo do mundo. “Estava exausto quando tirei a fotografia”, recorda o australiano, citado no comunicado que anuncia os premiados.
Na longa lista dos prémios deste ano, distribuídos por oito categorias, volta a haver um português. Mário Cruz, da agência Lusa, fotografou os talibés no Senegal e na Guiné-Bissau, rapazes entre os cinco e os 15 anos que vivem em escolas islâmicas e que, a pretexto de receberem uma educação corânica, são obrigados a mendigar pelas ruas, entregando os seus ganhos diários – dinheiro, arroz, açúcar – aos professores, que muitas vezes lhes batem e os violam. Alguns são confiados a estes falsos mestres pelos pais, sem meios para lhes garantirem outro tipo de educação, muitos são raptados.
As fotografias que valeram a Mário Cruz, de 28 anos, o primeiro prémio na categoria de Temas Contemporâneos, um ensaio sobre uma forma de escravatura contemporânea a que deu o nome de Talibés, Modern-day Slaves, acabam de ser publicadas pela revista norte-americana Newsweek, são a preto e branco e mostram, por exemplo, crianças a dormir sobre um chão de cimento numa escola islâmica em Saint Louis, no Senegal, onde vivem mais de 30 “discípulos”. Noutra vê-se um adolescente de 15 anos, Abdoulaye, num quarto com uma grade que o impede de fugir ao seu marabu (professor).
Fugir foi precisamente o que fizeram os meninos que o fotógrafo encontrou na margem de um rio, também em Saint Louis, numa zona conhecida como "a cidade dos talibés", dado o elevado número de rapazes que trocam os abusos de que são alvo nas escolas islâmicas pelas ruas, vivendo também na miséria mas em liberdade. A imagem captada por Mário Cruz parece transformá-los em espectros, como se os seus corpos não tivessem peso e não pudessem ser tocados, como se estivessem junto à água, à espera que algo aconteça.
Outra das fotografias desta série viaja até Bafatá, na Guiné-Bissau. Foi tirada num centro de acolhimento para rapazes que escaparam aos seus marabus ou que lhes foram retirados pelos tribunais, nos raros casos em que estes professores são julgados.
Só em 2014 este centro recebeu 45 talibés fugidos da escravatura. No texto publicado no site da revista norte-americana, Mário Cruz acrescenta que, segundo dados recentes da ONG Human Rights Watch, mais de 30 mil rapazes são forçados a mendigar só na região de Dacar. São na maioria senegaleses, mas, em virtude do crescente tráfico de pessoas, o número de meninos de países vizinhos como a Guiné-Bissau tem vindo a aumentar.
Cruz, que viu o seu trabalho elogiado pelo New York Times – o prestigiado diário americano publicou na sua edição impressa internacional algumas das fotografias de Roof, série em que acompanha pessoas que, por vários motivos, vivem hoje em edifícios abandonados de Lisboa –, já recebeu também o maior prémio de fotojornalismo português, o Estação Imagem, em 2014, com a reportagem Cegueira Recente.
O repórter da Lusa junta-se, agora, aos outros quatro portugueses que também já foram distinguidos pelo World Press Photo: Eduardo Gageiro (retrato do general Spínola, 1974), Carlos Guarita (indústria de armamento, 1994), Miguel Barreira (bodyborder nas ondas da Nazaré, 2007) e Daniel Rodrigues (rapazes a jogarem à bola na Guiné-Bissau, 2013).
Temas recorrentes
Olhando para as fotografias dos premiados nesta 59.ª edição do World Press Photo – o concurso, criado por uma fundação homónima com sede em Amesterdão (Holanda), existe desde 1955 –, dois acontecimentos sobressaem: a guerra na Síria e a crise dos refugiados.
No primeiro, destaque para o trabalho de Abd Doumany, um sírio que cobre o conflito pondo o foco na violência sobre as crianças de Douma: a que morreu na sequência de um ataque aéreo e que vemos ser levada nos braços por um homem saído dos escombros de um edifício, a que, com a sua curiosidade, confronta o fotógrafo num hospital, a que chora à espera de tratamento numa área controlada pelos rebeldes.
No segundo, a escolha torna-se mais difícil: o italiano Francesco Zizola fotografa a preto e branco os que arriscam atravessar o Mediterrâneo; Bulet Kilic dá-nos a sua versão de um mundo suspenso, como num teatro de marionetas, a partir do drama dos refugiados sírios que tentam entrar na Turquia; Matic Zorman faz um zoom sobre uma menina coberta com uma capa para a chuva, à espera de se registar num campo na Sérvia; e o russo Serguey Ponomarev capta migrantes num barco em Lesbos, na Grécia, um outro a tentar entrar num comboio com destino a Zagreb, na Croácia, e uma coluna de pessoas a percorrer um campo cheio de sol, chegada da Croácia e escoltada por um polícia esloveno a cavalo.
O trabalho de Warren Richardson, que concorreu na categoria Noticiário (Spot News), vencendo aí o primeiro prémio (o australiano apresentou apenas uma imagem e não uma série), cativou o presidente do júri, Francis Kohn, director de fotografia da Agência France-Presse, pela “simplicidade”. “É uma fotografia muito clássica e, em simultâneo, intemporal. Retrata uma situação, mas a forma como o faz é clássica, no melhor sentido da palavra”, disse Kohn, o homem que liderou um painel de 18 profissionais de 16 países, citado no já referido comunicado.
Para outros jurados, como Huang Wen, da Agência de Notícias Xinhua, é uma “imagem assombrosa” e “subtil”. Vaughn Wallace, editor de fotografia da Al Jazeera America, nota que a fotografia obriga a parar para nos determos na cara do homem e na criança, mesmo quando já se viram milhares de imagens de refugiados. “Vemos o arame farpado afiado e as mãos vindas da escuridão. Isto não é o fim de uma viagem, mas o culminar de uma fase de um futuro muito longo.”
Paralelamente aos que fotografaram a guerra na Síria e os refugiados, há ainda os que cobriram catástrofes como o terramoto no Nepal (Daniel Berehulak) e a explosão em Tianjin (Chen Jie); os que acompanharam grupos armados que lucram com o tráfico de marfins em vários países africanos (Brent Stirton); os que registaram o dia-a-dia da Coreia do Norte, urbana e rural (David Guttenfelder); e os que fixaram um festival de origem pagã que ainda hoje cria “altares” onde meninas entre os sete e os 11 anos posam durante horas seguidas, num profusão de cor.
Entre os projectos mais interessantes da selecção deste ano estão dois ensaios que exigiram grande proximidade com os fotografados, da autoria de duas mulheres. Em Sexual Assault in America’s Military, Mary F. Calvert retrata mulheres que foram agredidas sexualmente, ou até mesmo violadas, enquanto estavam ao serviço das forças armadas americanas. Em A Life in Death, uma filha (Nancy Borowick) fotografa os seus pais, Howie e Laurel, enquanto ambos recebem tratamentos de quimioterapia para combater o cancro. Trata-se de um projecto, explica o comunicado, sobre amar e viver quando se enfrenta a morte.
Garante o World Press Photo que o concurso deste ano decorreu sem sobressaltos, apesar do enorme volume de candidaturas. Foram 5775 os fotógrafos de 128 países que submeteram trabalhos, num total de quase 83 mil imagens. Quarenta e um profissionais acabaram premiados.