“Ninguém vê o que se está a passar.” Mário Cruz viu

O repórter Mário Cruz ganhou o primeiro prémio de Temas Contemporâneos do World Press Photo, o concurso de fotojornalismo mais importante do mundo. Com Talibés, Modern-day Slaves quer mostrar (e denunciar) uma forma de escravatura contemporânea que envolve crianças de vários países africanos.

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Pouco depois das 10h30 desta quinta-feira, o telefone de Mário Cruz começou a tocar “de cinco em cinco segundos”. O PÚBLICO fez um desses telefonemas. Não obteve resposta. Houve uma segunda tentativa a partir de um número diferente, e nada. Um terceiro telefonema logo a seguir (somos teimosos) e Mário Cruz atendeu quando ainda estava atordoado com a notícia de um primeiro prémio na categoria Temas Contemporâneos do World Press Photo (WPP), o mais conhecido e importante prémio de fotojornalismo do mundo.

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Pouco depois das 10h30 desta quinta-feira, o telefone de Mário Cruz começou a tocar “de cinco em cinco segundos”. O PÚBLICO fez um desses telefonemas. Não obteve resposta. Houve uma segunda tentativa a partir de um número diferente, e nada. Um terceiro telefonema logo a seguir (somos teimosos) e Mário Cruz atendeu quando ainda estava atordoado com a notícia de um primeiro prémio na categoria Temas Contemporâneos do World Press Photo (WPP), o mais conhecido e importante prémio de fotojornalismo do mundo.

Depois de meses a tentar publicar o ensaio com que ganhou o prémio numa revista de alcance mundial, há poucas semanas Mário Cruz – repórter da agência Lusa – decidiu tentar a sorte noutra revista, a Newsweek, que lhe deu um “sim” imediato. Na véspera do anúncio dos vencedores do WPP, esta quarta-feira, a revista norte-americana divulgou na sua edição online um conjunto de 20 fotografias com o título The Truth about Child Trafficking in Senegal. Com esta reportagem, o fotojornalista de 28 anos, que já venceu o prémio Estação Imagem, em 2014, quer denunciar e dar visibilidade a uma forma de escravatura, tráfico e maus tratos a que crianças do Senegal e da Guiné-Bissau (entre outros países) são sujeitas em daaras, escolas islâmicas.

Foi durante um trabalho na Guiné-Bissau, em 2009, que tomou conhecimento de uma realidade que ficou em estado de latência na sua cabeça. Em meados de 2015, depois de meses de preparação, decidiu que era o momento de ir para o terreno. Conversa em contra-relógio (porque o telefone não pára de tocar).

Parabéns pelo prémio. Estávamos quase a desistir. Não atendia o telefone…
Estou surpreendido, acabei de saber mesmo agora. Sabia que estava entre os finalistas, mas não fazia ideia de que ia ganhar.

A organização dá informação sobre quem está entre os finalistas?
Eles pedem as fotografias originais e todas as informações acerca das imagens… Mas não houve qualquer contacto sobre o prémio. Acabei de saber e o meu telefone agora toca de cinco em cinco segundos. Não consigo atender todas as chamadas.

Foi uma extraordinária coincidência ou a publicação do trabalho esta quarta-feira pela Newsweek estava programada para coincidir com o prémio?
Foi uma coincidência. Fiz o trabalho a meio do ano passado e apresentei-o em Perpignan [festival de fotojornalismo em França] em Setembro. Fiquei feliz com a aceitação que o trabalho teve lá. Houve muitas ofertas de publicação. Mas a oferta que acabei por escolher não se revelou a melhor opção. Estive muito tempo à espera que fosse publicado e as coisas não avançaram. Não correu nada bem. Há duas semanas decidi tentar outra publicação. Entrei em contacto com a Newsweek e foi tudo muito mais rápido e, por acaso, saiu ontem [quarta-feira]. Era para ter saído na segunda ou na terça, mas acabou por sair ontem de manhã (hora norte-americana). Como disse, foi uma extraordinária coincidência, não foi propositado. Não fazia ideia que ia ganhar alguma coisa no World Press Photo.

A publicação que recusou o trabalho deve ter ficado arrependida…
Já falei com a publicação em questão, que prefiro não nomear. Pediram-me imensa desculpa depois de terem visto o trabalho publicado na Newsweek. Foi um processo complicado depois de Perpignan. Foram muitos meses à espera, a história nunca mais saía. É cada vez mais complicado divulgar trabalhos deste tipo em revistas e jornais. Mas felizmente a Newsweek abriu-me as portas.

O tempo que mediou entre o momento em que tomou conhecimento deste problema e a sua concretização foi longo, cinco anos. Não receou que outros o tratassem?
Sim, demorou algum tempo até partir para o terreno. Mas o que aconteceu foi que tive de estabelecer prioridades. Quis documentar a situação de crise no meu país, Portugal. Achei que primeiro tinha de fazer isso e depois partir lá para fora. Quis documentar a crise através do projecto Roof (2014), que foi publicado pelo New York Times e premiado pela [cooperativa de fotografia] Magnum. Na verdade, depois de Roof abriram-se algumas portas e achei que era altura de procurar os temas que tinha em mente. No ano passado, decidi então trabalhar sobre a realidade dos talibés, as crianças escravas do Senegal.

O tema nunca lhe saiu da cabeça?
Quando estive na Guiné-Bissau, os relatos que ouvia através de familiares das crianças eram não só preocupantes, mas também assustadores. Havia relatos de que todas as semanas crianças desapareciam. Não era uma coisa que acontecia pontualmente. Aquilo ficou-me gravado e comecei a fazer muita pesquisa. Estive quase meio ano a fazer pesquisa. E felizmente consegui concretizar o trabalho.

Costuma dedicar sempre este tempo à pesquisa?
Neste caso teve de ser. É um assunto muito complexo de retratar. Está escondido da sociedade. Estas crianças são mantidas em locais absolutamente horríveis, degradantes e isolados. Não são espaços de fácil acesso. Nestes locais há actos criminosos. Tive de perceber bem a realidade e tive de perceber bem a dimensão do que estava a fotografar.

Quanto tempo esteve no terreno a fotografar?
Cerca de meio ano de preparação e um mês e pouco a fotografar.

Dizia que há cada vez mais dificuldade em publicar trabalhos deste tipo. Acha que esta situação ainda pode piorar?
Sinto essa dificuldade sobretudo em relação às gerações mais novas. Fazer um trabalho depende sempre se se tem meios para o fazer ou não. E, mesmo depois de feito, há pouca abertura para o publicarem. Lamento que assim seja, obviamente. E acho que este caminho é errado. Mais do que nunca, a fotografia é a prova, é o documento e a testemunha. Não devia ser tão difícil publicar uma história ou uma reportagem, uma denúncia.

Concretizou este trabalho em representação da agência para a qual trabalha, a agência Lusa?
Não. Pedi uma licença sem vencimento. Estive dois meses a trabalhar para mim. Não havia outra forma de o fazer. Quando fiz Roof, foi possível gerir as coisas de uma forma diferente, porque o objecto do trabalho estava em Portugal.

Tendemos a olhar para a escravatura como um assunto distante, de outros séculos. Que mundo é este que encontrou no Senegal?
É um mundo completamente à parte daquele em que vivo. Quando se entra numa daara [escola islâmica], que é o sítio onde as crianças estão, entra-se num mundo em que só se vê o medo nos olhos das crianças. É um mundo muito injusto. E sinto que há uma enorme indiferença em relação a este problema. É verdade que muitas destas crianças estão escondidas e que quase ninguém vê o que se está a passar. Mas a verdade é que isto existe. Há um dia nacional do talibé que acontece todos os anos em Abril no Senegal. Isto quer dizer alguma coisa, quer dizer que alguém sabe que este problema existe. Simplesmente ninguém faz nada. Espero que estas fotografias e que a projecção deste prémio, bem como a publicação do trabalho pela Newsweek possam mudar alguma coisa.

É portanto um trabalho de denúncia.
É um trabalho de denúncia, mas é sobretudo um trabalho jornalístico. Quis contar o que realmente se passa com a vida destas crianças… e é só isto.

Uma fotografia “assombrosa” e um português premiado no World Press Photo 2015