Uma harpa e uma kora: duas culturas unidas para nos encantar
Catrin Finch e Seckou Keita. Ela, harpista de relevo. Ele, mestre da kora. As tradições celta e mandingo tornadas numa só. Um encontro de uma graciosidade imponente. Esta quarta-feira na Gulbenkian, em Lisboa.
Quando era ainda memória viva a passagem dos romanos pelo que é hoje o País de Gales, a harpa era instrumento de bardos e de reis. Tocado pelos primeiros para ânimo e deleite dos segundos, era sobre o som produzido pelas suas cordas que se ouviam os versos dos poetas. A kora foi oferecida há 300 anos pelos deuses, assim diz a lenda, aos habitantes do império Mandingo, na África Ocidental, que abarcava o que é hoje o Senegal, o Mali ou a Guiné. Tornou-se instrumento da corte do império. Os que tocavam as suas cordas tinham por missão preservar as tradições, iluminar a história, glorificar a realeza e o seu povo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando era ainda memória viva a passagem dos romanos pelo que é hoje o País de Gales, a harpa era instrumento de bardos e de reis. Tocado pelos primeiros para ânimo e deleite dos segundos, era sobre o som produzido pelas suas cordas que se ouviam os versos dos poetas. A kora foi oferecida há 300 anos pelos deuses, assim diz a lenda, aos habitantes do império Mandingo, na África Ocidental, que abarcava o que é hoje o Senegal, o Mali ou a Guiné. Tornou-se instrumento da corte do império. Os que tocavam as suas cordas tinham por missão preservar as tradições, iluminar a história, glorificar a realeza e o seu povo.
Um continente, um mar e um oceano separam Gales do antigo território do Império Mandingo. Um muito que é nada, como o perceberam Catrin Frinch, harpista galesa, e Seckou Keita, tocador de kora senegalês. Um acaso do destino juntou-nos em 2012. Muitos concertos e um disco depois, (Clychau Dibon, de 2013), chegarão a Portugal. Esta quarta-feira, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, a partir das 21h, ouviremos, à uma, a tradição celta e mandingo, o som ondulante da kora e os movimentos graciosos da harpa . E perceberemos que, nesta altura, já não estamos perante duas tradições que se observam em busca de pontos de contacto, como o explica em entrevista telefónica Catrin Finch. “Quando começámos, procurámos repertório e virámo-nos para a música tradicional. Eu, a galesa, o Seckou a sua. Os instrumentos parecem muito diferentes e são muito diferentes, mas foi surpreendente perceber como se conjugavam. Em termos harmónicos e de estrutura, estas músicas tradicionais encaixavam como se emanassem de um mesmo lugar – e provavelmente vieram do mesmo lugar”.
O primeiro encontro deu-se quando Seckou foi chamado de emergência para ensaiar com Catrin Finch, ocupando assim o lugar de Toumani Diabaté, “o Deus da kora” - como lhe chamou Ali Farka Touré num histórico concerto em Monsanto, Lisboa, 2004. Nessa altura, em 2011, Finch e Tiabaté conseguiram ainda tocar juntos. Depois, as exigências da preenchida agenda de Diabaté e a sua preocupação com a situação dramática no seu país, o Mali, onde um golpe de Estado colocara fundamentalistas islâmicos no poder, tornaram muito difícil a continuação da colaboração. Havia ainda outro problema. “Há pessoas com quem comunicamos na perfeição e outras que não. Na música, isso percebe-se instantaneamente”. A empatia musical que, surpreendentemente, falhou com Diabaté, iluminou-se nos ensaios à última hora com Seckou. “Quando toquei com Seckou, tornou-se simples fazer estes dois instrumentos comunicarem”, recorda. “Tocamos instrumentos diferentes e vimos de tradições diferentes, mas fazemo-los soar a um só”. Quando se sentam lado a lado, já não precisam de se observar mutuamente, procurando compreender o outro. “No início era como se estivéssemos a descobrir e a lançar as premissas. Agora, é melhor a cada novo concerto, porque corremos mais riscos, porque sabemos instintivamente o que o outro vai fazer. A música acontece simplesmente. Flui”.
Expandir a tradição
Catrin Finch, 36 anos, é uma das mais famosas harpistas da actualidade. Ouviu a harpa pela primeira vez aos 5 anos, num concerto da espanhola Marisa Robles, e descobriu naquele momento o seu futuro. “Tornei-me uma daquelas crianças que sabe exactamente o que quer ser quando crescer”. O facto de viver no País de Gales, onde existe uma grande tradição de harpa, facilitou os estudos e o contacto com a tradição do instrumento. O percurso posterior deve-o ao talento e à sua curiosidade. Alia o virtuosismo ao desejo de abrir novos horizontes para a harpa, presa à imagem de instrumento de acompanhamento, instrumento feminino, angelical, ancestral.
Arriscou ao interpretar as Goldberg Variations de Glenn Gould, ao juntar-se à banda colombiana Cimarrón, ou ao aceitar com entusiasmo a proposta, feita em 2012, de juntar a sua harpa à kora de Toumani Diabaté numa sala em Cardiff. Pelo meio, aos 19 anos, num curioso completar de círculo, foi convidada por Carlos, Príncipe de Gales, para se tornar a sua harpista oficial, dando sequência a uma tradição abandonada há séculos. Sobre o instrumento que escolheu, diz: “Não tem grande repertório e tem dificuldade em ser vista como um verdadeiro instrumento solista. É por isso que tenho tentado envolver-me com outros músicos e outros géneros. Os públicos são actualmente muito mais abertos, sempre em procura de algo novo. É isso que a harpa está a fazer, a oferecer algo de diferente e um pouco misterioso, invulgar”.
Seckou Keita, 37 anos, nasceu no Senegal com ascendência que lhe determinou o futuro. O pai é descendente da família real dos Keita, a mãe, tem no apelido Cissokho a marca dos griots, músicos e cantores responsáveis pela preservação da história. Foi o avô que o iniciou e conduziu no seu papel. Seguindo a tradição, começou a aprender a construir koras aos sete anos, aos 14 iniciou-se no repertório da família, os Cissokho – o pai desaparecera da sua vida quando era criança - e aos 18 foi-lhe oferecida, por fim, a primeira kora. O crescente entusiasmo pela percussão, cujos segredos aprendia em paralelo, levou-o a deixá-la para segundo plano durante um breve período. Foi pela mestria na percussão que iniciou a sua carreira musical, que o levou à Noruega e a Índia, que o levou ao Reino Unido, onde reside desde 1999. Mas a kora chamá-lo-ia novamente.
“Como um tocador de kora, aprendemos o repertório tradicional. Quando atingi os 18 anos, já o sabia, mas é aquilo que fazes com esse conhecimento que verdadeiramente determina a tua vida enquanto tocador de kora”, escreve Keita na biografia disponível no site dedicado à sua colaboração com Catrin Finch. Seckou, que conta no seu currículo com colaborações com Salif Keita ou Youssou N'Dour, com o maestro francês Philip Fournier ou com o violinista indiano Dr. L. Subrimaniam, procurou levar a kora a expandir-se além da sua tradição. Experimentou novas e inéditas afinações para o instrumento e o seu álbum a solo, Baiyo (editado em 2000 e reeditado mais tarde como Mali), pretendia ser espelho das suas viagens e descobertas enquanto músico, cruzando África, a Europa e a Índia. O seu álbum mais recente, 22 Strings, editado em 2015 e agora distribuído em Portugal, é mais um passo nessa caminhada.
Conhecendo o percurso de Seckou Keita e Catrin Finch, não surpreende que, acaso feliz ou não, tenham acabado por se encontrar. O que resultou é uma suave revelação, desvendada enquanto ouvimos a harpa liderar uma peça para logo tomar a kora o seu lugar, até chegarmos a um ponto em que, como disse Finch, parece não existir kora ou harpa, tradição mandingo ou tradição celta. Apenas um som mágico enfeitiçando o ar.