Deixa o cão no carro enquanto vai dar uma volta? Pense duas vezes

Julgamento mostra fragilidades da nova lei que criminaliza maus tratos a animais de companhia.

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A nova lei não criminaliza os maus-tratos por negligência Ricardo Silva

Do alto dos seus 12 anos de idade, nunca Gipsy imaginou poder ser o centro de uma quezília tão peculiar. E o metalúrgico reformado também não vai esquecer tão cedo aquele domingo de Abril, em que um descuido o atirou, menos de um ano depois, para o banco dos réus.

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Do alto dos seus 12 anos de idade, nunca Gipsy imaginou poder ser o centro de uma quezília tão peculiar. E o metalúrgico reformado também não vai esquecer tão cedo aquele domingo de Abril, em que um descuido o atirou, menos de um ano depois, para o banco dos réus.

Depois de almoço abriu as portas traseiras da sua carrinha para Gipsy entrar, como tinha feito tantas vezes, e rumou com a cadela branca e castanha ao Parque das Nações. Ia à Nauticampo, a feira de campismo e náutica da FIL. “Para onde eu vou ela vai sempre comigo”, não se cansa dizer. Mas foi precisamente por não ter seguido à risca este mandamento que Sebastião Caetano se vê agora, aos 85 anos de idade, em maus lençóis. Estacionou nas imediações, deixou as frestas dos vidros da carrinha abertas e a bichana fechada no habitáculo de trás do veículo, com uma tigela de água. Quando regressou, duas horas e meia ou três depois, nem queria acreditar no aparato à volta de Gipsy, com polícia e tudo: diziam que a tinha maltratado, por a ter deixado sozinha ao calor.

Não era ainda Verão mas até parecia, e o sol que batia na carrinha fazia subir a temperatura lá dentro. Foi uma professora de Educação Física que ia a passar, Vanda Ferreira, quem chamou a polícia, já o octagenário tinha ido ver os barcos e os apetrechos de campismo. À decisão não foi alheio o facto de ir consigo um amigo a quem já havia morrido um cão dentro do carro. “E o veterinário também já me tinha chamado a atenção” para o perigo que representam estas situações, contou ontem a docente no Campus da Justiça, em Lisboa, onde depôs como testemunha.

Sebastião Caetano vai abanando a cabeça enquanto a ouve falar, em sinal de reprovação. “Preferia passar eu mal do que a minha cadelinha”, há-de dizer ao juiz. O certo é que naquela tarde quente de domingo, os polícias repararam que o animal estava a ficar prostrado, com a respiração ofegante, à medida que o tempo passava. Mais de duas horas depois de o dono se ter ausentado, resolvem partir a borracha que segura uma das janelas da carrinha para conseguirem abrir a porta e deixar entrar o ar.

O octogenário só chega quase meia hora mais tarde: ficara à conversa com um amigo que não via há muito. Apesar de todo o aparato deixam-no levar a cadela de volta para casa. Meses mais tarde, quando é interrogado no Departamento de Investigação e Acção Penal, ainda lhe propõem que doe 200 euros a uma instituição de solidariedade para lhe suspenderem o processo. Assim evitava ter de ir a tribunal, a não ser que voltasse a ser apanhado numa situação semelhante. Mas o arguido toma-se de brios e recusa. Os 600 euros mensais com que tem de viver mais a mulher não lhe permitem extravagâncias, e vê o pagamento como um assumir de culpas que continua a enjeitar.

Prefere juntar ao processo uma declaração do veterinário de Gipsy na qual este explica que não considera de forma alguma Sebastião Caetano, seu cliente há vários anos, uma pessoa descuidada para com os animais ou capaz de os maltratar. “Por diversas vezes se apresentou na clínica com casos bastante complicados de cães que recolheu da rua, aos quais ofereceu cuidados médicos, bem como abrigo”, escreve o veterinário. É, porém, bastante diferente o teor da acusação que lhe move o Ministério Público: “Ao deixar o canídeo no interior da traseira do automóvel durante cerca de três horas sabia que lhe causava sofrimento e prejudicava o seu bem estar e a sua saúde”.

A sentença está marcada para 26 de Fevereiro, mas o procurador que tem o caso em mãos em tribunal já reconheceu que o caso redundará em absolvição – independentemente do nível de gravidade do sucedido. Em primeiro lugar porque os polícias não chamaram nenhum veterinário que pudesse atestar o estado em que se encontrava o bicho. Mas sobretudo porque a lei de 2014 que criminalizou os maus tratos “só prevê o crime a título doloso”, ou seja, quando existiu inequivocamente intenção de maltratar – e não por negligência, como pode eventualmente ter sido o caso. Ou seja, tivesse Gipsy sido fechada num espaço ainda mais reduzido e debaixo de 40 graus e o resultado mais certo seria também a absolvição do dono, bastando não ficar provado que ele tencionara fazer-lhe mal.

“Apesar de muito positiva, a lei que criminaliza os maus tratos tem várias falhas”, reconhece o comissário político nacional do PAN (Pessoas Animais Natureza), Francisco Guerreiro. Por isso, o partido prepara-se para propor na Assembleia da República a sua “actualização”. O mesmo responsável diz que este caso mostra como é preciso passar a permitir a entrada de animais com os donos em recintos fechados. “A maioria dos Estados-membros da União Europeia não tem esta proibição”, observa.

O metalúrgico reformado está quase a terminar o seu depoimento em tribunal. Perguntam-lhe se quer dizer mais alguma coisa. Olho por olho, dente por dente: “Estou pronto para passar duas horas dentro do veículo. Para provar que a cadela não esteve em perigo sujeito-me a isso”.