Síria, Líbia e Iémen: Estados falhados, problemas para a Europa
No passado, estes conflitos seriam quase uma curiosidade para o europeu comum. Hoje, Estados falhados na Síria, Iémen e Líbia são uma séria ameaça à segurança da Europa.
1. Um dos problemas mais agudos do mundo globalizado são os Estados falhados. No passado, a distância geográfica e as condicionantes tecnológicas limitavam as repercussões do fracasso de um Estado. Era um problema político local. Quando muito, seria também regional. Hoje não é assim. As sequelas de um Estado falhado podem projectar-se sobre partes do mundo percebidas como distantes, ainda não há muito tempo atrás. Os casos da Síria, Iémen e Líbia mostram essa realidade à Europa, de uma dupla maneira: pelo fluxo de refugiados e pelo islamismo-jihadista que recorre à violência e ao terror, dentro e fora desses territórios, incluindo em solo europeu. Há uma certa ironia histórica, ou até uma espécie vingança nisto. Os europeus e ocidentais foram os que mais impulsionaram a globalização. Foram também estes quem, ao longo dos séculos XIX e XX, espalharam a lógica política de Estado-nação soberano pela generalidade do mundo. Após as tragédias da I e da II Guerra Mundial — essencialmente duas guerras civis europeias —, mudaram. As elites passaram a preferir uma União Europeia imbuída de ideais supranacionais e de uma “paz perpétua” à maneira do projecto de Kant, em finais do século XVIII. Contrastivamente, a guerra de “todos contra todos” retratada no Leviatã de Hobbes do século anterior, parece ter-se transferido para o Mediterrâneo Sul e Oriental envolvente.
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1. Um dos problemas mais agudos do mundo globalizado são os Estados falhados. No passado, a distância geográfica e as condicionantes tecnológicas limitavam as repercussões do fracasso de um Estado. Era um problema político local. Quando muito, seria também regional. Hoje não é assim. As sequelas de um Estado falhado podem projectar-se sobre partes do mundo percebidas como distantes, ainda não há muito tempo atrás. Os casos da Síria, Iémen e Líbia mostram essa realidade à Europa, de uma dupla maneira: pelo fluxo de refugiados e pelo islamismo-jihadista que recorre à violência e ao terror, dentro e fora desses territórios, incluindo em solo europeu. Há uma certa ironia histórica, ou até uma espécie vingança nisto. Os europeus e ocidentais foram os que mais impulsionaram a globalização. Foram também estes quem, ao longo dos séculos XIX e XX, espalharam a lógica política de Estado-nação soberano pela generalidade do mundo. Após as tragédias da I e da II Guerra Mundial — essencialmente duas guerras civis europeias —, mudaram. As elites passaram a preferir uma União Europeia imbuída de ideais supranacionais e de uma “paz perpétua” à maneira do projecto de Kant, em finais do século XVIII. Contrastivamente, a guerra de “todos contra todos” retratada no Leviatã de Hobbes do século anterior, parece ter-se transferido para o Mediterrâneo Sul e Oriental envolvente.
2. Foi na Europa do século XVII, após a Paz de Vestefália, que o Estado soberano, mais tarde também Estado-nação, começou a adquirir os contornos hoje familiares. Está vertido no Direito Internacional vigente, mas não encaixa, automaticamente, noutras partes do mundo, a começar pelo Sul e Leste do Mediterrâneo. Aí vive-se sincronicamente, mas não se está no mesmo tempo histórico. Ao olharmos para as características que deveria revestir percebemos melhor a sua inadaptação. Implica um território e fronteiras delimitadas. Implica uma população, a qual, a partir do ideário da Revolução Francesa de 1789, deveria constituir uma nação. Também, deverá estar dotado de um poder político (soberania). Prossegue três finalidades, as quais justificam a sua própria existência: a segurança, a justiça e o bem-estar económico e social. O Estado soberano, no seu tipo ideal um Estado-nação — ou seja, onde a população constituiria uma comunidade unida por laços culturais, históricos, ou outros —, foi o modelo político que os europeus projectaram até à descolonização do século XX. A concepção reflecte as especificidades dos processos histórico-políticos europeus, mas não de outros povos com diferentes matrizes culturais e histórias políticas. É uma forma moderna de organizar politicamente as comunidades humanas. Pressupõe a superação das identidades tribais, étnicas e religiosas tradicionais, por uma ampla e partilhada identidade nacional. Mas isso não ocorreu, nem ocorre, em muitas partes do mundo.
3. O problema dos Estados falhados começa quando estes fracassam nas suas finalidades últimas. As fraquezas estruturais intrínsecas levam a que muitos Estados possam, apropriadamente, ser como qualificados como Estados fracos. Verificando-se certas circunstâncias adversas, internas e / ou externas podem transformar-se num Estado falhado, ou até numa espécie de “Estado-gangster”. A falta de recursos e a incapacidade em construir uma administração estadual que chegue à generalidade do território e população, com serviços básicos e segurança, gera descontentamento e pode abrir a porta a males maiores. Uma outra causa de relevo decorre do facto de o aparelho estadual ser monopolizado, frequentemente, por um grupo étnico, religioso ou cultural. Nesses casos é usado de forma discriminatória e / ou repressiva, face a outros grupos étnicos, religiosos e ou culturais. Na envolvente do Mediterrâneo Sul e Oriental da Europa, é fácil encontrar exemplos. Na Síria, grupos da maioria sunita sublevaram-se contra o governo de Bashar Al-Assad, denunciando a sua opressão e o domínio do Estado pelos alauítas. Os curdos têm a sua própria reivindicação de opressão face aos Estados onde, nominalmente, são cidadãos: Síria, Turquia, Iraque e Irão. No Iémen, após a revolta da Primavera Árabe, Ali Abdullah Saleh saiu para o exílio. Os huthis oriundos do xiismo zaidi — e do Iémen do Norte —, insurgiram-se contra o Estado que vêm como corrupto e repressor, procurando tomar o poder na capital. Quanto às populações do Iémen do Sul, ressentem o domínio do Norte, após a unificação de 1990. Na Líbia, as profundas diferenças entre a região ocidental (Tripolitana), a região oriental (Cirenaica) e o interior Sul do território, explodiram em confrontos tribais que fracturam o país após a queda de Kadhafi.
4. A herança de um passado imperial e colonial é naturalmente relevante para explicar o problema dos Estados fracos que se transformam em Estados falhados. A falta de viabilidade económica, a ausência de estruturas estatais que sustentem uma comunidade política de facto independente e a incapacidade dos governantes criarem um sentimento de pertença a uma comunidade política nacional, são exacerbadas pela arbitrariedade das fronteiras. Os novos Estados soberanos do período pós-colonial foram condicionados à sua nascença. Em muitos casos, têm uma população fragmentada, onde etnias, grupos religiosos e comunidades culturais pré-existentes ao domínio imperial / colonial, se dividem por vários Estados. Essas divisões são fonte de atritos e conflitos. Importa não perder de vista que no actual Médio Oriente há um duplo passado imperial e colonial. Primeiro, o do Império Otomano, até à I Guerra Mundial. Perpetuou instituições políticas pré-modernas até ao início do século XX e formas de governo sectárias.Estas baseiam-se em lógicas étnico-religiosas e / ou tribais, não em lógicas políticas e ideológicas no sentido moderno, secular e ocidental do termo. É a esse legado que se deve o facto de a identidade religiosa, étnica e/ou tribal ser, ainda hoje, fundamental nos seus sistemas políticos. Torna a implantação da democracia muito difícil. Depois, há o legado colonial europeu, sobretudo do mandato franco-britânico da Sociedade das Nações, entre as duas guerras. Na realidade, foi mais a legitimação de uma presença das potências europeias que já era anterior. O domínio britânico e francês estava previsto no Acordo Sykes-Picot de 1916, feito durante a I Guerra Mundial. A presença da França na Síria deriva dele. O domínio da Grã-Bretanha sobre o Iémen (parte Sul) e da Itália sobre a Líbia, são episódios coloniais paralelos.
5. Por motivos diferentes, a Síria, a Líbia e o Iémen são hoje Estados falhados. A Síria é terreno de uma violentíssima guerra civil, com cada vez maior intervenção, sob várias formas, de potências estrangeiras — especialmente, a Rússia, o Irão, a Turquia e a Arábia Saudita. A Líbia, desde 2011, com a deposição e morte de Kadhafi, facilitada por bombardeamentos aéreos franco-britânicos e da NATO, ficou mergulhada no caos. Surgiram dois governos e dois parlamentos: um em Tobruk, reconhecido internacionalmente; o outro em Trípoli, apoiado por milícias islamistas-jihadistas. Apesar da recente formação de um governo de unidade, a fragilidade da solução torna pouco provável a estabilização política. Mais perigoso ainda, membros do Daesh, estão a deslocar-se para Líbia, com os seus líderes a tentar criar aí uma base de operações terroristas. No seu próprio interesse, os europeus não deviam ter agudizado aos problemas já existentes, como fizeram na Líbia. O Iémen está dilacerado por uma guerra interna, com intervenção militar da Arábia Saudita e aliados do Conselho de Cooperação do Golfo, apoiada por outros Estados sunitas. O grupo islamista-jihadista Ansar al-Sharia / Al-Qaeda na Península Arábica, implantou-se no terreno, especialmente no antigo Iémen do Sul, entre a população sunita. Aproveita-se da anarquia existente, amplificada pela intervenção militar da Arábia Saudita e aliados, bem como da sua conivência na guerra contra os Huthis xiitas. No passado, estes conflitos seriam quase uma curiosidade para o europeu comum. Hoje, Estados falhados na Síria, Iémen e Líbia são uma séria ameaça à segurança da Europa.