Igreja de S. Cristóvão esvaziou-se para acolher uma oração pela dança
Coreografia de Madalena Victorino inaugurou uma exposição que pretende ser uma viagem – e, pelo caminho, ajudar a reabilitar uma igreja lisboeta do século XVII.
Faltam 15 minutos para as sete da noite de domingo e, apesar do mau tempo, as escadas da Igreja de S. Cristóvão, na Mouraria, Lisboa, estão cheias de gente. Não é a hora da missa, mas o que vai acontecer no interior é também uma oração. Só que esta, no centro vazio da igreja, sobre as pedras do chão, é uma oração de corpos que atravessam o espaço em gestos de amparo e desamparo.
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Faltam 15 minutos para as sete da noite de domingo e, apesar do mau tempo, as escadas da Igreja de S. Cristóvão, na Mouraria, Lisboa, estão cheias de gente. Não é a hora da missa, mas o que vai acontecer no interior é também uma oração. Só que esta, no centro vazio da igreja, sobre as pedras do chão, é uma oração de corpos que atravessam o espaço em gestos de amparo e desamparo.
As pessoas nas escadas esperam para assistir a uma das seis apresentações da obra Ringue, que a coreógrafa Madalena Victorino fez (entre os dias 11 e 14) para a igreja, e que é o primeiro dos quatro passos da exposição Não Te Faltará a Distância, comissariada por Paulo Pires do Vale. Integrada no projecto Arte por S. Cristóvão, do Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Lisboa, a iniciativa pretende, entre outras coisas, chamar a atenção para a urgência de reabilitar esta igreja do século XVII.
Quando pensou a exposição, Paulo Pires do Vale tinha dois caminhos: trazer obras para dentro do espaço da igreja ou esvaziá-lo como forma de o dar a conhecer. Optou pelo segundo. Os bancos foram retirados, deixando o centro vazio, disponível para acolher as várias obras, em diferentes suportes. Ainda neste primeiro passo, Madalena Victorino convidou Margarida Mestre para, nos próximos dias 20 e 21, apresentar uma “criação vocal inspirada nas sonoridades de celebrações religiosas” de diferentes comunidades e interpretada por um coro de cerca de 40 lisboetas. Este ciclo termina dia 27 às 19h com uma conversa entre a coreógrafa e o curador intitulada O Corpo, o Lugar e a Distância.
Depois de a dança e de a voz ocuparem a igreja, virá, no segundo passo (em Março), a imagem filmada, com duas obras de Francis Alys, artista belga a viver na Cidade do México; a seguir (Abril-Maio) a escultura, com Rui Chafes a criar peças especialmente para ali, numa obra intitulada Ascensão; e por fim o quarto e último passo (Junho), novamente com um filme, Gabriel, obra de 1976 da artista norte-americana Agnes Martin. A par deste quarto passo haverá nas associações recreativas, culturais e desportivas da Mouraria um ciclo de cinema sobre a viagem, com filmes de John Ford, Pasolini, Nanni Moretti e David Lynch. Será a altura de a igreja sair para fora das suas portas e viajar até à comunidade.
“Esta exposição foi pensada como se ela própria fosse uma viagem. É feita com o tempo e não apenas com o espaço”, explica o comissário. Daqui até Julho as pessoas são convidadas a voltar à igreja e a cada visita vê-la-ão de forma diferente, transformada pelas obras de arte. O mote é a própria figura de S. Cristóvão, um gigante que carregava às costas os viajantes que precisavam de atravessar um rio e que um dia, transportando um menino, sentiu um peso enorme – a criança era Cristo e carregava consigo todo o peso do mundo.
Paulo Pires do Vale parte, por isso, da ideia de viagem, por um lado, e da oposição entre peso e leveza por outro. “É uma lenda muito bonita, a do homem-viajante, permanentemente deslocado, à procura. Há aqui a noção da distância, de nós em relação a nós próprios, aos outros, àquilo que desejamos.” Daí o título, a partir de um verso do poeta Daniel Faria: “Não te há-de faltar a distância.” Ou, como escreve Pires do Vale no texto de apresentação, “o caminho está sempre a fazer-se, em aberto, inacabado”.
E porque o caminho pode pensar-se de várias maneiras, há uma outra peça, do francês Martin Monchicourt, que nos acompanha à medida que subimos as Escadinhas de S. Cristóvão, da Rua da Madalena até à igreja. “Attention à la marche [atenção ao degrau]", lê-se em cada um dos degraus. “Numa tradução livre pode ser algo como ‘Cuidado com o caminho’”, diz Paulo Pires do Vale. “É um aviso que estamos habituados a ver quando há um degrau. Quando há 100, torna-se risível, mas ao mesmo tempo chama-nos a atenção para o gesto, dá-nos uma consciência do próprio acto de andar.”
E se há um lado poético no pensar a vida como caminho, há também um lado político, numa altura em que a Europa assiste à chegada de tanta gente que caminha para sobreviver, lembra o comissário, que escreve: “A imagem do viajante implica também a do hóspede: como lidamos com o viajante, como acolhemos o hóspede estrangeiro? – pergunta que ecoa tragédias contemporâneas e que é necessário sempre retomar.”
Biscoitos e telhas para salvar a igreja
Há também um caminho a fazer para salvar a Igreja de S. Cristóvão e o padre Edgar Clara está disposto a fazê-lo, por longo e difícil que possa parecer. O facto é que a persistência do padre já se traduziu em 140 mil euros que espera que se transformem em 200 mil até Agosto, altura em que pretende começar as obras mais urgentes: a recuperação do telhado e a iluminação da igreja. Depois, para a reabilitação total, são precisos mais 800 mil euros.
A tela de A Última Ceia, que foi encontrada caída e em muito mau estado por detrás do altar-mor, está já a ser recuperada com o dinheiro obtido através de crowdfunding e deverá regressar à igreja em Março. Os quase 200 mil já recolhidos vieram de várias iniciativas, desde a venda de telhas e de biscoitos – a campanha Vamos Meter São Cristóvão na Boca de Toda a Gente já rendeu seis mil euros – até donativos de particulares, que não querem ser identificados.
Mas o projecto Arte por S. Cristóvão não tem que ver apenas com recolha de fundos. “Quero muito que as pessoas possam olhar para o que aqui acontece como uma coisa inspiradora, que se sintam chamadas também para a oração”, diz Edgar Clara. A coreografia de Madalena Victorino – inspirada pela tela que está na sacristia e que representa Cristo abraçando S. José no leito de morte – traz para o centro da igreja a relação entre o sagrado e o corpo.
“O primeiro sentido aqui é o da evangelização”, sublinha o padre. “Não quero que as pessoas se sintam enganadas. Quero que crentes e não crentes se possam cruzar num espaço que é sagrado e perceber porque é que ele é sagrado.” Mesmo quando o que se passa em S. Cristóvão é um bailado e não uma missa, estamos sempre no domínio da oração. “Eu não fiz a homilia, foram os bailarinos que a fizeram e foram eles que transmitiram esse abraço de Jesus a S. José. E quando os vi expressarem tudo aquilo, pensei: 'Quando um dia morrer, quero que Jesus me venha buscar assim.'”