Amizade verdadeira entre um homem e uma mulher

Sei que as pessoas se confundem num mundo já ele próprio confuso, mas a amizade é uma coisa séria, se preservada dura epopeias, se cultivada é inexplicável e se sentida não tem género. É ainda impossível uma amizade entre um homem e uma mulher?

Foto
Marco Gil

A amizade é um amor diferente, nem é para mais nem para menos, sente-se noutra medida. Sofre-se como se fossemos o outro a sofrer, ganhamos com as conquistas dele, somos felizes se lhes sentirmos as gargalhadas, e um dos maiores princípios é vê-los bem... aos nossos amigos, porque é dessa forma que também estaremos felizes.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A amizade é um amor diferente, nem é para mais nem para menos, sente-se noutra medida. Sofre-se como se fossemos o outro a sofrer, ganhamos com as conquistas dele, somos felizes se lhes sentirmos as gargalhadas, e um dos maiores princípios é vê-los bem... aos nossos amigos, porque é dessa forma que também estaremos felizes.

Os nossos amigos não têm diferenças, nem sequer género, mas na maior parte das vezes (ou sempre) parece quase impossível que um homem e uma mulher não possam partilhar uma amizade verdadeira, que lhes desconfiamos de imediato segundas intenções. Não se percebe que existe um laço gigantesco e inquebrável que pode unir pessoas do sexo oposto e que pode apenas ser a amizade, que se ouve logo um burburinho "ah é mais que isso...", como se pudesse existir algo mais que a amizade.

Um rapaz e uma rapariga podem realmente ser amigos, carrego comigo um testemunho digno disso mesmo, capaz de entrar para o Guiness, se porventura existissem recordes na amizade. "Ela" é a Leticia, e não, não namoramos. Temos que dar esta resposta tantas vezes que já a sabermos de cor. Também não trocamos roupa interior nem as outras coisas que levantam as dúvidas de quem não percebe que a maior das bençãos é ela poder conceder-me uma amizade em vias de extinção. Sofro-lhe as ausências, sinto a perda de não poder partilhar os dias todos com ela, porque quando estamos juntos não escasseamos de felicidade, as gargalhadas podem conter décibeis que não são permitidos por lei, mas o que perdemos em poluição sonora ganhamos em cumplicidade.

Ela consegue perceber quando o meu coração sofre uma arritmia mesmo antes de acontecer e se o encontro que vou ter dali a 15 dias valerá a pena. Escolhe-me a melhor camisa naquele momento, porque segundo ela é entendida nos gostos da outra pessoa. Eu dou-lhe os melhores conselhos, não consinto ver-lhe uma lágrima a escorrer-lhe pelos nosso rosto e sei que vai sempre correr tudo bem independentemente do que ela leve vestido, porque lhe conheço a presença e a atitude, a genialidade do sentido de humor ou a cor dos olhos que vai dar segredo às inseguranças que lhe vão surgir, porque eu sei que elas vão acontecer. Serei o porto de abrigo para a sms — urgente, mas sei que ela não vai carregar no botão, nem é por vergonha, é porque na hora da verdade ela não teme... ela enfrenta. Conheço-lhe os maiores segredos que o coração lhe guarda e abro-lhe sempre a cortinas do meu de forma a nem deixar uma fisga fechada.

Brindamos e outras vezes rimos de todas as vezes que nos dizem: "...mas porque não tentam? ficam tão bem juntos...". Na verdade nós já estamos juntos e de uma forma insubstituível, só que não percebem. Nessas alturas ela já é mais descarada e consegue rir-se sem explicar às pessoas que um rapaz e uma rapariga podem ser somente amigos, mas existe sempre alguém que lhe desconhece a essência e nem o faz por mal, é porque nem percebe a amizade.

Põe a música que eu gosto, fuma a meias comigo (e sei o quanto isso lhe custa , sofre com as minhas perdas, exulta com as minhas vitórias, sorrimos ao mesmo tempo, percebe as piadas que só nós os dois entendemos, acrescenta-me bom gosto sem que eu tenha que nada retribuir e sabemos fazer uma coisa juntos que só o consegue quem dignifica a amizade ao mesmo tempo que a sente: silêncios, aqueles que demoram e não incomodaram porque nem os sentimos, quando estamos lado a lado, daqueles que parecem interromper a vida e numa outra ocasião alguém teria que tossir para que não parecesse mal, nós sabemos fazer isso... em silêncio.

Quando parto sei que lhe deixo uma parte de mim e trago a dela comigo, mas a distância não interrompe a intensidade. É intrínseco isto. Preciso dela por cada encontro, nem é que sejam muitos, mas ela nunca falha na cor da camisa ou na fragância, creio que é por saber as mulheres de cor ou por me conhecer tão bem. Ela critica-me na frente e defende-me nas costas, eu faço o mesmo porque nos é exigido assim.

Aprecio-lhe aquele jeito bravo ou rebelde, a frontalidade, as inseguranças e gosto de a ver refilar... umas vezes para mim, outras vezes para o ar, gosto da forma como a cabelo dela sopra em uníssono com o vento, do reflexo das coisas quando lhe resvalam no olhar. Admiro a forma como ela vê o mundo, como exibe a opinião, como recua quando percebe que não é a correcta.

"Só se escreve assim quando estamos apaixonados por alguém", também já ouvi esta, admito que o ênfase que lhe dou pode ganhar outros sentidos, mas é porque a amizade que nos une é desmedida, contém mais exageros e afecto que lacunas, tenho em mim que nada pode ficar por dizer, ou por mostrar. A amizade entre um homem e uma mulher é das coisas mais extraordinárias, o mundo devia parar para pensar que os amigos se escolhem, mas a escolha não é feita pelo sexo, que um beijo no rosto é tão nobre e forte como uma muralha, que uma amizade vale pela combinação e quando ela se acerta não há jogo de lotaria que lhe faça frente, vale pela cumplicidade, pelo companheirismo, pelos abraços a qualquer hora, pelas zangas que são pazes cinco minutos depois.

Nunca poderei perguntar a um padeiro como se faz uma estante e é por isso que consigo entender quem não nos percebe, quem nos troca o sentimento, porque somos de géneros diferentes. Acredito que o facto de nós não vivermos em mundos diferentes possa encurtar as semelhanças. Sei que as pessoas se confundem num mundo já ele próprio confuso, mas a amizade é uma coisa séria, se preservada dura epopeias, se cultivada é inexplicável e se sentida não tem género. É ainda impossível uma amizade entre um homem e uma mulher?