A Carochinha a voar na TAP
Se transportar directamente 190 mil pessoas para as quatro cidades europeias em causa dá prejuízo, não se percebe como há-de dar lucro enfiá-las num avião da ponte aérea, desembarcá-las em Lisboa e reembarcá-las para Milão ou Roma.
A nova administração da TAP prepara-se para vir ao Porto contar a história da Carochinha aos autarcas. Na mão, leva um papel segundo o qual os voos para Barcelona, Milão, Roma e Bruxelas dão um prejuízo anual de oito milhões de euros. E, num prodigioso exercício de fantasia, a administração da TAP reconhece que essa perda aconteceu apesar de as ligações terem taxas de ocupação entre os 78 e os 85%.
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A nova administração da TAP prepara-se para vir ao Porto contar a história da Carochinha aos autarcas. Na mão, leva um papel segundo o qual os voos para Barcelona, Milão, Roma e Bruxelas dão um prejuízo anual de oito milhões de euros. E, num prodigioso exercício de fantasia, a administração da TAP reconhece que essa perda aconteceu apesar de as ligações terem taxas de ocupação entre os 78 e os 85%.
É melhor não entrarmos no caminho dos detalhes para tentar perceber por que razão o voo para Barcelona gera prejuízos quando apenas 15% dos lugares ficaram vagos – é sempre fácil acrescentar ou retirar custos ou de introduzir nos cálculos doses ponderadas de criatividade. O que não percebemos é como quer a TAP transportar as cerca de 190 mil pessoas que fizeram essas rotas em 2015 obrigando-as a uma escala em Lisboa e, no final, do dia, conseguir obter lucro.
Ora, a TAP não quer ir por aí e é por isso que toda a estratégia da sua administração parece uma história infantil. O seu único fim é adormecer os autarcas e empresários do Norte e mostrar ao Governo que está empenhada numa solução.
A TAP do consórcio Gateway dominada pelo homem forte da companhia brasileira Azul não está empenhada em solução alguma no Porto porque a sua visão estratégica se sustenta exclusivamente na ponte entre o Brasil e a Europa, na qual Lisboa aparece como o principal pilar e o interesse do Norte do país como uma bizarria. Era por isso bom que essa visão fosse assumida de uma vez por todas e não nos viessem com contas suspeitas como a dos prejuízos dos voos que vão ser suspensos numa altura em que se vai começar a viajar do Porto para Varsóvia por menos de 40 euros.
Era bom que nos explicassem por que razão os voos para Barcelona ou Milão ou Bruxelas com partida em Lisboa dão lucro e os do Porto são prejuízo. Têm taxas de ocupação superiores a 85%? Mesmo assim não chegaria, porque no caso do Porto, diz a business intelligence da TAP, teria de chegar aos 116%. Têm preços mais caros? Não podem, porque assim perderiam lugares para a concorrência. Têm custos operacionais mais baixos? Mas como, se afinal não se cansam de nos dizer que o aeroporto da Portela está com problemas de sobreocupação?
Se transportar directamente 190 mil pessoas para as quatro cidades europeias em causa dá prejuízo, não se percebe como há-de dar lucro enfiá-las num avião da ponte aérea, desembarcá-las em Lisboa e reembarcá-las para Milão ou Roma. Claro que não dá. A TAP suprime voos porque deliberadamente está a desinvestir do aeroporto do Porto, mantendo uma estratégia que já dura há anos e que fez com que se limite hoje a dispor de uma quota de mercado de 20% no aeroporto Sá Carneiro (cerca de 60% no agora aeroporto Humberto Delgado).
Mais, a TAP não só quer colocar o Porto à margem da sua estratégia como desenhou até um plano para lhe disputar uma faixa significativa do seu mercado natural, o da Galiza, criando um voo diário entre Vigo e Lisboa. Nessa estratégia que, se for bem-sucedida, reduzirá o raio de influência do Sá Carneiro e do Porto no noroeste peninsular, o que importa não são os “interesses específicos do Porto”, que, numa carta aos autarcas, a administração da TAP se prontifica a defender; é, pelo contrário, o objectivo de “expandir a importância” do centro de operações de Lisboa.
Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, tem estado à frente da contestação aos planos da TAP porque percebeu que os planos da TAP podem ter o tom azulado de uma companhia aflita no Brasil ou a tonalidade mármore dos interesses que espreitam a oportunidade de construir um novo aeroporto em Lisboa, mas são uma ameaça para o Porto e para o Norte.
Ao contrário do que certas opiniões da capital, sempre prontas a dar largas à sua proverbial irritação com o atrevimento dos autarcas ou dos empresários do Norte, sugerem, o que está em causa não é um desabafo bairrista nem uma bravata identitária de gauleses irredutíveis; o que está em causa são ameaças reais à dinâmica da região mais exportadora do país. O que está em causa é o protesto contra mais uma operação que apenas servirá para reforçar o atavismo de um país excessivamente centralista e monopolar.
Se uma companhia privada decidir desinvestir no Porto ou em Braga ou em Vila Real para se concentrar em Faro ou em Olhão, mesmo que cause perturbações nos seus clientes, o que fica na mesa é apenas uma opção legítima dos seus accionistas; se uma companhia cujo maior accionista é o Estado decidir sair do Porto, se desistir de parte dos seus clientes e, pior, se tentar esvaziar o seu potencial de desenvolvimento, o que fica em causa é uma opção política na qual todos somos convocados para intervir.
É por isso que, um destes dias, mais cedo do que tarde, o primeiro-ministro e o ministro do Planeamento e Infraestruturas, Pedro Marques, terão de se sentar à mesa para encontrarem um consenso sobre o significado do “interesse nacional”. Ou, pelo menos, sobre a forma como há-de a TAP cumprir esse tão elevado desígnio a partir do aeroporto Francisco Sá Carneiro.
É que se o ministro está empenhado na “salvaguarda dos interesses estratégicos do país”, está pouco ou nada interessado em discutir questões comezinhas como rotas ou a dimensão da presença da companhia aérea neste ou naquele aeroporto nacional. Pelo contrário, António Costa é mais preciso na definição do “nível estratégico” que justifica a presença do capital público na transportadora, dizendo preto no branco em relação ao aeroporto do Porto que é do interesse nacional “fixar algumas rotas estratégicas” a partir da cidade ou manter aí uma “base aeroportuária activa que favoreça toda a região”.
A definição do que é o interesse nacional e a forma como a TAP o pode desempenhar torna-se assim o ângulo fundamental da discussão em torno da renacionalização de parte do capital da companhia e em torno do esvaziamento reflectido e deliberado do Sá Carneiro. A partir do momento em que se reconhece (e não há quem o não reconheça) que uma região fortemente exportadora precisa de um aeroporto dinâmico para garantir o seu nível de internacionalização, retirar-lhe ligações a centros importantes como Milão, Barcelona ou Bruxelas é, de alguma forma, ameaçar a sua competitividade.
A TAP, na sua actual configuração accionista, não pode entrar nesse jogo que compromete a equidade territorial. E, mais ainda, não pode vir com histórias da Carochinha dizendo-nos que voos com taxas de ocupação com 85% dão prejuízo nesta era de prosperidade para as low-cost. Se a TAP ainda é a “nossa” companhia, tem de agir em conformidade. Se não o fizer e se não for reprivatizada, não passará de mais um odiento instrumento do Estado que discrimina cidadãos, instituições ou empresas que vivem ou operam a norte do Mondego.