O cante ergueu-se em Madrid para Espanha descobrir Terras Sem Sombra
A Sala das Colunas do Círculo de Bellas Artes de Madrid sobrelotou para ouvir o cante dar a conhecer um festival de e para o Alentejo: música sacra, património e biodiversidade.
Ouve-se primeiro uma voz que mal se distingue entre o ruído do polícia de trânsito que apita, dos carros que buzinam, dos motores no pára-arranca da calle de Alcalá, praça de Cibeles mesmo ali ao lado. Uma cabeça, duas, dez cabeças que param no passeio, guarda-chuva puxado para trás, olhos que se levantam para olhar a varanda no quarto andar do Círculo de Bellas Artes de Madrid. Já não é só uma voz. O mote foi dado e o coro reuniu-se: o cante alentejano apresenta-se na capital espanhola.
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Ouve-se primeiro uma voz que mal se distingue entre o ruído do polícia de trânsito que apita, dos carros que buzinam, dos motores no pára-arranca da calle de Alcalá, praça de Cibeles mesmo ali ao lado. Uma cabeça, duas, dez cabeças que param no passeio, guarda-chuva puxado para trás, olhos que se levantam para olhar a varanda no quarto andar do Círculo de Bellas Artes de Madrid. Já não é só uma voz. O mote foi dado e o coro reuniu-se: o cante alentejano apresenta-se na capital espanhola.
As vozes pertencem aos Ganhões de Castro Verde, ao Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento e aos Moços d’Uma Cana, que pouco depois, pelas 20h de sábado, subiram a palco na Sala das Colunas do Círculo de Bellas Artes. “Nunca se viram tantos alentejanos em Madrid”, brincou José Abreu, dos Moços d’Uma Cana, de Castro Verde, quando, no final das apresentações de cada grupo, todos se juntaram, as violas campaniças e as vozes dos Moços, os coros dos Ganhões e do Rancho, para a despedida: “Vamos nós saindo/ por esses campos fora/ que a manhã vem vindo/ dos lados da aurora”, entoaram ao abandonar o palco, atravessando a plateia perante os aplausos dos 550 espectadores que sobrelotaram a sala (500 era o número de lugares sentados disponíveis).
Os alentejanos estavam ali para que, já este mês e até Junho, se vejam muito mais espanhóis no Baixo Alentejo. A iniciativa madrilena serviu, de forma abrangente, para promover o Alentejo – ofereceram-se vinho, enchidos, queijo e doçaria no hall da sala, o que transformou o final do concerto num outro tipo de celebração: entre golos de branco e tinto ou dentadas nas queijadas, ouviram-se mais versos cantados ao improviso. Um convívio que se imagina adequado ao espírito do pretexto desta estreia do cante em Madrid, o festival de música sacra do Baixo Alentejo Terras Sem Sombra, que cumprirá este ano a sua 12.ª edição.
Criado em 2003 pelo Departamento de Património Artístico e Arquitectónico da Diocese de Beja, com o apoio das autarquias locais (estiveram presentes em Madrid os presidentes de Câmara de Sines, Santiago do Cacém, Serpa e Castro Verde), para dar vida às igrejas históricas do Baixo Alentejo, rapidamente extravasou esse propósito inicial. “É um festival de território”, dirá ao PÚBLICO o director do festival, José António Falcão, reconhecido especialista em arte sacra e director de Património da Diocese de Beja, e repetirá Juan Angel Del Campo, ensaísta e reputado crítico musical do El País. Espectador atento e empenhado do Terras Sem Sombra, tornou-se seu director artístico em 2015, tomando o lugar do italiano Paolo Pinamonti.
Por festival de território, entenda-se um festival que pretende englobar o património, as gentes, a biodiversidade. Abrem-se as portas das igrejas históricas alentejanas (e, este ano, também as dos auditórios de Serpa e Sines) à música sacra, das suas manifestações medievais às contemporâneas, acolhem-se nomes e repertório de relevo no género e criam-se novos laços entre a população local, a música ali apresentada, o público visitante e os artistas.
Num dia enchem-se as igrejas para ouvir a música ou para assistir a workshops e masterclasses (“Temos uma vertente pedagógica vincada”, acentua José António Falcão); na manhã seguinte, público, músicos e organizadores partem paisagem fora para descobrir o espaço natural alentejano e aprender os seus segredos. Digamos que no Terras Sem Sombra se apoia a preservação do saramugo, pequeno e raro peixe ameaçado de extinção, enquanto se recupera também “a polifonia portuguesa, que esteve quase perdida”, exemplifica o director do festival.
Descentralizador, de entrada gratuita e criado numa lógica de proximidade e exigência quanto à programação, o Terras Sem Sombra espalha-se pelos concelhos do Baixo Alentejo (a edição de 2016 passará por Almodôvar, onde dia 27 de Fevereiro os Divino Sospiro darão o concerto de abertura na Igreja Matriz de Santo Ildefonso, Sines, Santiago do Cacém, Ferreira do Alentejo, Odemira, Serpa, Castro Verde e Beja) e, localidade a localidade, dinamiza à sua pequena escala a economia e a cultura locais e promove, pela sua natureza, relações improváveis noutro contexto: e eis que podemos ver, como recorda José António Falcão, um velho pastor a discutir o som das flautas artesanais construídas pelo seu pai com intérpretes de flauta barroca, ou Jordi Savall, felicíssimo com que tudo o que vivia, ouvir o seu agente confirmar-lhe, para sua tristeza, que teria mesmo de seguir viagem para concertos noutras paragens, quando o que queria era demorar-se mais tempo no Alentejo.
A edição 2016 terá como convidado o Brasil, estando programadas uma ópera para crianças, Oheama, que desloca lendas nórdicas aproveitadas por Wagner para o cenário amazónico (21 de Maio, Cineteatro de Serpa), ou uma leitura de Heitor Villa-Lobos pelo quarteto de guitarras paulista Quaternaglia (7 de Maio, Igreja de Santa Maria, Odemira). Abrindo-se ao mundo, ou não fosse o Terras Sem Sombra organizado este ano sob o tema Torna-Viagem, dará também a ouvir músicos da Guiné Conacri e dos Camarões fazerem a ponte entre Ligeti e as polirritmias africanas (4 de Junho, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde). Destaca-se ainda a presença do grande maestro rossiniano Alberto Zedda (2 de Abril, Igreja Matriz de Santiago Maior, Santiago do Cacém) ou a apresentação de uma obra peculiar: Sempre/Ainda, de Alfredo Aracil é apresentada como “ópera sem vozes” (12 de Março, Centro de Artes de Sines).
Do fado ao cante
O Terras Sem Sombra representa “uma valorização da região, importante para que se recebam outras músicas e para que se promova o intercâmbio entre o cante, como força motriz, e outros géneros", diz Pedro Mestre, que esteve na Sala das Colunas integrado no Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento e que é um dos grandes responsáveis pela recuperação da viola campaniça e um artista e artesão marcante na actual tradição baixo-alentejana.
Filipe Pratas, dos Ganhões de Castro Verde, que no seu último registo discográfico, As Nuvens que Andam no Ar, contam com colaboração do pianista brasileiro Luiz Avellar ou do contrabaixista Carlos Baretto, defende como essencial e inevitável essa abertura do cante a novas contaminações. Sempre com o cuidado de não trair aquele que é o seu sopro de vida. A elevação do cante a património imaterial da humanidade foi importante, quanto mais não fosse pela multiplicação das solicitações feitas aos grupos, mas é preciso continuar o trabalho: defende a necessidade da criação de mais grupos e de mais registos discográficos, acentuando como indispensável que os novos intérpretes do cante bebam da sabedoria dos velhos, que aprendam com eles “os tons da terra”.
Mas, e voltemos ao Círculo das Bellas Artes, porquê a apresentação em Madrid? E porquê com o cante? Através do cante mostra-se uma componente importante do espírito alentejano e, dado que parte das suas raízes se encontram na música sacra, estabelece-se relação directa com o festival. Quanto à escolha da capital espanhola, há uma razão forte: permite "apresentar o Alentejo e um público cosmopolita e interessado, sendo que parte do público do festival já é espanhol, vindo da Andaluzia e Extremadura”, diz José António Falcão.
Há uma vertente ibérica determinante no festival que deve ser ainda mais explorada, acentuará mais tarde Juan Angel Del Campo. A programação reflecte-o: os Divino Sospiro interpretarão repertório histórico espanhol, o conjunto espanhol La Grande Chapelle, sob direcção de Albert Recasens, interpretará Manuel Machado, Manuel Correa e Filipe da Madre de Deus, compositores portugueses que fixaram residência em Espanha no século XVII (18 de Junho, Igreja de Santiago Maior, Beja).
Juan Angel Del Campo diz que, neste momento, o público espanhol está enamorado pelo fado, e recorda como Camané foi sempre tão bem recebido nesta mesma Sala das Colunas do Círculo de Bellas Artes de Madrid. Di-lo para afirmar: “É preciso que descubram também o cante. Basta ouvirem."
Bastou. A pose austera do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento, negro dominante dos sapatos ao chapéu, e o troar imponente das suas vozes, provocando assombro na sala enquanto se ouvia Pomba branca ou Entrudo – há neles uma majestosidade que se impõe, uma pose dignificada naquele aceno de agradecimento com os dedos tocando levemente a pala do chapéu. Os Ganhões de Castro Verde, camisa campestre, albarda e manta ao ombro, mescla de vozes jovens e vozes moduladas por muitos anos de vida, a iluminarem a plateia com os versos de alerta de O emigrante ou É tão grande o Alentejo. Os Moços d’Uma Cana, prova da vitalidade que a viola campaniça recuperou depois de, até há alguns anos, ter praticamente desaparecido – agora estavam dez em palco, lideradas por Diogo Pereira e Zé Diogo Bento, e o público chegou às palmas a compasso a acompanhar o tom aberto de vozes e violas.
“Encantam-me as vozes cantadas em conjunto desta forma. Sentimos raízes clássicas, qualquer coisa do canto gregoriano, mas em voz do povo”, comenta à saída do concerto a alemã Zazie Wurrr. A seu lado, Manuel Dominguez partilha do maravilhamento, mas o mistério do polifónico cante, onde ecoam a tradição gregoriana e as marcas da passagem árabe pelo Alentejo, matéria transformada pela vida, pela sensibilidade e pelo temperamento das suas gentes, não lhe era totalmente desconhecido. No início dos anos 1980, editara em Espanha, através da sua Guimbarda, José Afonso ou Vitorino, e lembra-se de ver os Trovante, nos bastidores dos espectáculos, irromperem em canto comunal. “Mas isso era diferente. Nunca tinha visto um concerto de cante."
Minutos depois, um homem entra pela pequena varanda da cozinha que serve de camarim para, actuação concluída, acender um cigarro. É um dos Ganhões de Castro Verde. Olha (concentrado ou impassível, não conseguimos distinguir) o céu escuro nublado, sem estrelas à vista, e os prédios altos à sua frente. Correu bem? Um murmúrio, um aceno positivo com a cabeça. Longa pausa. “Foi bom. Ouviram em silêncio. Não se sentia um rumor." O cante quer ser ouvido com atenção. A música quer ser ouvida. Ouvida verdadeiramente. No Círculo de Bellas Artes ou numa igreja histórica do Baixo Alentejo.