A HBO tem o peito mais peludo e mais sexy da televisão

O primeiro episódio de Vinyl poderá ser o filme mais satisfatório de Martin Scorsese desde Entre Inimigos.

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Richie Finestra (Bobby Cannavale) e Devon (Olivia Wilde) são duas das personagens principais desta série HBO

A concorrência para se ter a melhor série na televisão está muito mais dura do que o costume, e talvez por isso a nova série da HBO, vistosa e muitas vezes espantosa, parece ser a série mais HBO que o canal alguma vez fez.

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A concorrência para se ter a melhor série na televisão está muito mais dura do que o costume, e talvez por isso a nova série da HBO, vistosa e muitas vezes espantosa, parece ser a série mais HBO que o canal alguma vez fez.

Vinyl exibe o seu poderio, desferindo entretanto uns golpes sujos. Para citar uma canção pop recente, esta série decididamente tem moves like Jagger – e, porque é sobre o negócio musical enlouquecido pela cocaína nos anos 1970, também tem Mick Jagger como co-criador e musa (e progenitor de um dos membros do elenco).

Se a ideia é não poupar esforços numa narrativa fascinante e sem falhas sobre um conjunto de pessoas – na sua maioria homens com egos enormes – que têm problemas extremos, e muitas vezes criminais, numa época glamorosa, então é precisamente isso que a HBO conseguiu. Outra vez. 

O primeiro episódio de Vinyl poderá ser considerado o filme mais satisfatório de Martin Scorsese desde Entre Inimigos, preenchido que está de uma sensação panorâmica de obstinação, pelo uso poderoso da música e por uma actuação ardente do protagonista, Bobby Cannavale. Outra aposta segura é Terence Winter, produtor e argumentista de Os Sopranos cujo último projecto para a HBO foi Boardwalk Empire, um exercício similar de colaboração com Scorsese numa série perfeita de gangsters e de época, uma tapeçaria densa sobre o crime nos anos 1920 e 30.

Substitua-se a era do jazz pela do glam rock, troque-se o álcool de contrabando por linhas infinitas de coca e Vinyl pode muito bem ter o mesmo destino. Vinyl e Boardwalk Empire são, de muitas formas, a mesma série, embora Vinyl tenha um número muito mais baixo de mortes – até agora. Em vez da Atlantic City de Nucky Thompson, atiramo-nos de cabeça no mundo de Richie Finestra (Cannavale), um toxicodependente que também é fundador e CEO da American Century, uma editora com sede no famoso Brill Building de Manhattan.

Estamos em Agosto de 1973 e, finalmente, toda a gente percebeu que os anos 1960 acabaram. A editora está cheia de músicos medianos de todos os géneros – do rock ao funk, da folk a Donny Osmond , mas há o detalhe infeliz dos caixotes e caixotes de LP por vender, das vendas em queda e dos artistas em deserção. A editora está desesperada para contratar a próxima grande banda e Richie e os seus sócios estão prestes a vender uma parcela importante da American Century aos alemães que dirigem a PolyGram.

O episódio-piloto estabelece uma sensação de força e pânico muito Scorsese, que prossegue nos episódios seguintes. A equipa de AR [Artistas e Reportório], encabeçada por Julius Silver (Max Casella), não consegue encontrar novos nomes e manter-se a par dos desejos do chefe. Já a chamada “miúda das sandes”  e fornecedora de drogas do escritório , Jamie Vine (Juno Temple), encontrou a sua nova esperança – um quinteto duro e rebelde chamado Nasty Bits, encabeçado por um heroinómano com mau feitio de seu nome Kip Stevens (James Jagger). O que os espectadores reconhecerão facilmente como uma banda proto-punk é, claro, a maldição dos diletantes de bocas de sino da American Century. 

Sabiamente, os criadores enfatizam os lindíssimos interlúdios musicais de Vinyl. Quer em cenas desencadeadas por canções que permanecem na memória das personagens, quer em concertos meticulosamente recriados, a música recebe uma atenção fanática.

Por mais que tente ver televisão sem um iPhone à mão, Vinyl quase exige que o tenha graças à forma como cose, sem costuras, a história do rock e o faz-de-conta, factos e ficção. (Uma cena levou-me a correr para o Google em busca da história do desabamento de um edifício em Manhattan no Verão de 1973; outra fez-me passar em revista o alinhamento de um álbum de Alice Cooper.) A série nunca entretém tanto como quando coloca actores a fazer de versões jovens de estrelas rock e outros nomes sonantes da era  Robert Plant, Lou Reed, Andy Warhol e muitos mais. O efeito é quase como viajar no tempo.

Embora o tema central de Vinyl seja a completa hipocrisia e bajulação da indústria musical, isso não circunscreve os problemas de Richie ao escritório. Crime, mafia e um encontro com um antigo músico de blues Lester Grimes (Ato Essandoh) levam a uma história mais profunda sobre traição e desilusão – e também sobre o racismo inerente à indústria.

Nos primeiros cinco episódios dos dez da série, a personagem mais memorável poderá mesmo ser a mulher de Richie, Devon, interpretada por Olivia Wilde. Uma antiga rapariga da Factory de Andy Warhol que desistiu da vida cool para criar os seus filhos no arrumado Connecticut, Devon torna a negligência do seu marido uma produtiva fonte de raiva.

Wilde é fabulosa, cool e calculista como Devon. Embalada pela voz de Karen Carpenter a cantar Yesterday once more no rádio da carrinha, lembra-me que eram as personagens femininas de Boardwalk Empire (Kelly Macdonald como Margaret Schroeder Thompson; Gretchen Mol como Gillian Darmody), bem como as personagens de minorias (Michael Kenneth Williams como Chalky White), que lhe davam uma acessibilidade e uma profundidade emocional que não teria se fosse apenas povoada por um desfile infindo de mafiosos brancos. Vinyl também tem muitos homens, reflectindo a realidade do negócio do rock'n'roll e a forma como diminuía mulheres e minorias. Mas mais uma vez vale a pena perguntar: porque é que nenhuma destas grandes séries constrói uma narrativa em torno da mulher?

Através de personagens como Devon, Jamie e Lester, Vinyl preencheu muito avisadamente os quadradinhos da sua lista de diversidade, mas a testosterona ainda é claramente a substância mais viciante (e preferida) da HBO. É a testosterona que atira a guitarra à televisão e que esmaga a cabeça de um inimigo num momento de raiva e drogas. É a testosterona que se atira do palco para o meio da multidão. É a testosterona que usa as calças justas e desabotoa a sua camisa de polyester até ao umbigo.

Vinyl é o canal a lembrar o resto do mundo da TV que tem o peito mais peludo e mais sexy da cidade.

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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