Viver e morrer em Lampedusa
Primeiro grande filme da competição de Berlim: Fuocoammare, em que Gianfranco Rosi presta testemunho sobre a tragédia dos refugiados.
"Você fez um filme que é profundamente político sem tomar partido. E ao fazê-lo está também a retirar a questão do âmbito local e a transformá-la em algo que nos afecta a todos e é da responsabilidade de todos. Era isso que pretendia?"
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"Você fez um filme que é profundamente político sem tomar partido. E ao fazê-lo está também a retirar a questão do âmbito local e a transformá-la em algo que nos afecta a todos e é da responsabilidade de todos. Era isso que pretendia?"
A pergunta de uma jornalista ao realizador Gianfranco Rosi vai directa ao âmago da questão que percorre Fuocoammare, o primeiro de dois documentários no concurso oficial de Berlim. O que começou como uma encomenda do Istituto Luce, o organismo estatal italiano do cinema, sobre a ilha de Lampedusa, mais próxima da costa africana do que da Sicília e, como tal, porta de entrada escolhida por milhares de imigrantes ilegais, tornou-se outra coisa: um filme-testemunho sobre duas comunidades que coabitam mas nunca se cruzam realmente.
De um lado, todo o processo de resgate dos barcos improvisados onde dezenas, centenas de refugiados procuram chegar à Europa e fugir à guerra ou à miséria. Do outro, o quotidiano dos residentes locais, pescadores, médicos, reformados, locutores de rádio, miúdos. Lampedusa está no olho do furacão, mas se não estivermos a olhar não percebemos sequer que há um furacão.
Filme-testemunho
Rosi, que venceu o Leão de Ouro de Veneza em 2013 com Sacro GRA (e antes disso o DocLisboa com El Sicario, Room 164), não é um cineasta unânime. O seu interesse sobre o que constitui uma comunidade e a sua postura observacional, largando o espectador sem apelo nem agravo nos locais que filma em takes longos (rodados por uma equipa reduzida com o próprio à câmara e um operador de som), abrem-se a acusações de voyeurismo, aproveitamento, manipulação. Fuocoammare não escapa a essa regra, mas contorna-a através da forma como o faz, com elegância e uma maior contenção do que antes.
Um miúdo brinca num bosque, corta uns quantos galhos de uma árvore; a noite cai, estamos no convés de um barco-patrulha, ouvimos os pedidos desesperados de ajuda de uma casca de noz cheia de gente que está a afundar-se. O filme constrói-se todo nesse verso e reverso de medalha: de um lado o quotidiano de uma Lampedusa que existe apesar da tragédia, que continua a viver, do outro a tragédia de gente que chega às mãos da guarda costeira e das autoridades literalmente meia morta. Vida e morte, riso e lágrima, comédia e tragédia.
É por isso que Rosi responde à jornalista, na conferência de imprensa, que os seus filmes "nunca são abertamente políticos". "Mas neste caso o importante era ser testemunha de uma tragédia que está a acontecer agora, e que é da responsabilidade de todos. E que é provavelmente a maior tragédia a que assistimos desde o Holocausto." Os jornalistas não se poupam a aplaudir as palavras de Rosi, tal como não pouparam aplausos ao filme, no final da projecção de imprensa.
Discos pedidos
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Dito isto, há que dizer que Fuocoammare não é um panfleto. Sem contextualização nem voz off, à imagem dos filmes anteriores, limita-se a descrever a simultaneidade de dois mundos que nunca se tocam: num dois miúdos discutem a engenharia da fisga ideal, noutro dois carabinieri encarregues de revistar os refugiados recém-chegados reflectem como todos eles trazem colados à pele o odor do combustível. Num um miúdo queixa-se ao médico de ataques de ansiedade, noutro joga-se futebol de cinco entre refugiados sírios e eritreus. Num dois miúdos fingem disparar sobre pássaros, noutro um helicóptero levanta voo de um barco-patrulha para localizar uma embarcação de migrantes. Num uma velha senhora dedica canções populares ao filho na rádio local, noutro os marinheiros tentam acalmar o desespero de uma mulher que pede ajuda para o barco que se afunda.
Um desses "discos pedidos" chama-se Fuocoammare, "fogo no mar": a referência é ao mar vermelho dos foguetes e projécteis disparados durante a Segunda Guerra Mundial, mas que hoje se transmutou no sangue dos milhares de mortos ao largo de Lampedusa. Pietro Bartolo, director do hospital de Lampedusa e há 20 anos na primeira linha do apoio médico aos migrantes que são resgatados, diz ter visto praticamente cada um dos 250 mil homens, mulheres e crianças que passaram pela ilha. É uma das presenças constantes no filme, a única "ponte" entre os dois mundos, e veio com Rosi a Berlim defender o filme (Samuele Pucillo, o miúdo de 12 anos que serve de nosso guia pelo quotidiano de Lampedusa, também cá está). E diz esperar que Fuocoammare tenha o impacto que os milhares de peças jornalísticas que têm sido feitos sobre a crise dos refugiados e as dezenas de entrevistas que deu não têm conseguido ter.
Há que dizer que, a julgar pela recepção calorosa, e pelo seu tema escaldante, nas bocas do mundo, Fuocoammare salta direitinho para o primeiro lugar da lista dos potenciais vencedores do Urso de Ouro. Berlim sempre gostou de alardear a sua convicção interveniente, e o filme de Gianfranco Rosi está mesmo a jeito. E os corredores da Berlinale, mesmo sem serem unânimes na sua opinião sobre o cineasta, são unânimes em admitir que Fuocoammare é um filme que dá vontade de conversar, questionar, discutir. O que também é papel dos festivais de cinema – lançar achas para a fogueira.
Também aí Fuocoammare é um desbloqueador: goste-se ou não, não lhe ficamos indiferentes. Sem que para isso tenha tido necessidade de tomar partido. Os melhores filmes políticos são aqueles que não o são de todo.