Um acordo que tem tudo para falhar mas pode salvar vidas
Compromisso internacional dá prioridade ao acesso da ajuda e prevê que os combates cessem numa semana. Assad diz-se decidido a reconquistar toda a Síria.
Não é um acordo de paz nem um cessar-fogo, é um compromisso para a “cessação nacional das hostilidades” no prazo de uma semana, que prevê o acesso “imediato” de ajuda humanitária às populações mais vulneráveis. Tem tudo para falhar, mas se funcionar pode salvar vidas e ser um primeiro passo na direcção de um qualquer acordo político que permita, por fim, aos sírios respirar.
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Não é um acordo de paz nem um cessar-fogo, é um compromisso para a “cessação nacional das hostilidades” no prazo de uma semana, que prevê o acesso “imediato” de ajuda humanitária às populações mais vulneráveis. Tem tudo para falhar, mas se funcionar pode salvar vidas e ser um primeiro passo na direcção de um qualquer acordo político que permita, por fim, aos sírios respirar.
O texto assinado na madrugada de sexta-feira pelo Grupo Internacional de Apoio à Síria deixa por definir “as modalidades da cessação das hostilidades”, explicitando que de fora fica a luta contra os jihadistas do Daash (autodesignado Estado Islâmico) e a Frente al-Nusra, o grupo ligado à Al-Qaeda presente em várias frentes de combate.
Partindo do princípio de que o regime de Bashar al-Assad e os rebeldes que o combatem aceitam o que foi acordado em Munique – a oposição tem poucas alternativas, tendo em conta as perdas recentes na região de Alepo –, uma das questões mais complexas será determinar o que são alvos aceitáveis para quem bombardeia os extremistas. “Falar da Nusra convém à Rússia porque há muitos grupos rebeldes que têm ligações com este”, nota Julien Barnes-Dacey, analista do Conselho Europeu de Relações Externas, citado pela AFP. “Isso dá-lhes na prática luz verde para continuarem com as suas operações militares enquanto mantêm um apoio puramente formal ao acordo.”
A Rússia, que bombardeia a Síria desde Outubro, tem atacado forças que os Estados Unidos e outros países apoiam ou consideram forças moderadas, ajudando assim aos avanços do regime.
Segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, os bombardeamentos russos na sexta-feira de manhã mataram 16 civis. “Houve também ataques contra escolas e hospitais”, afirmou Mevlut Cavusoglu, sem especificar onde é que estes raides aconteceram.
Moscovo diz ter entrado no conflito para combater “o terrorismo” – Assad fala de todos os grupos armados no terreno como “terroristas”.
Aliás, se é verdade que Damasco não reagiu oficialmente ao anúncio de Munique, uma entrevista dada por Assad horas antes da assinatura do compromisso internacional parece destinada a miná-lo. Numa conversa com a AFP, o Presidente sírio afirmou-se decidido a recuperar o controlo de todo o país, avisando que os combates podem ser “longos”.
“Não é lógico dizermos que há uma parte do nosso território à qual vamos renunciar”, disse. “Sejamos capazes ou não de o fazer, é um objectivo que procuraremos atingir sem hesitações”, respondeu, quando questionado sobre se considera ser possível que o seu regime volte a controlar a Síria. “Actualmente, como os terroristas são abastecidos em permanência através da Turquia, da Jordânia, e talvez do Iraque, onde o Daash actua com apoio saudita, turco e qatari, é evidente que os prazos para uma solução serão mais longos e o preço da paz mais pesado”, acusou Assad.
Quem são as forças em combate na Síria
Se estas palavras fossem levadas à letra, poderia dar-se já por enterrado o acordo. Mas se há algo a que Assad habitou o mundo é a dizer uma coisa e a fazer o seu contrário. Desta vez, por uma vez, pode ser que essa tendência funcione a favor da população síria.
A força do acordo agora alcançado é ter sido negociado, assinado e anunciado pela Rússia – o Kremlin quer manter o líder sírio no poder e a sua influência no país, mas não quer continuar por tempo indeterminado o actual envolvimento no conflito nem ser visto como responsável pelo fracasso de um compromisso. No Grupo Internacional de Apoio à Síria estão ainda todos os outros grandes actores externos envolvidos de forma directa ou indirecta no conflito, incluindo o Irão, que apoia o regime, e o seu arqui-inimigo, a Arábia Saudita, que apoia grupos que combatem Assad.
Palavras num papel
Para já, só existem “palavras num papel”, disse o próprio secretário de Estado norte-americano, John Kerry. “O que precisamos de ver nos próximos dias são acções no terreno.” Só então, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Frank-Walter Steinmeier, “saberemos se isto foi um avanço importante”.
Algo em que o texto assinado pelos 17 membros do Grupo Internacional de Apoio à Síria é específico é nas prioridades humanitárias, enumerando-se as seis localidades e cidades sujeitas a cercos que devem começar a receber ajuda mais urgente. Um grupo de trabalho formado para assegurar o acesso dos bens necessários já se reuniu na sexta-feira à tarde durante três horas em Genebra.
“As viaturas com ajuda podem partir muito em breve se e quando tivermos a permissão dos grupos no terreno”, disse o presidente deste grupo, Jan Egeland, secretário-geral da ONG Conselho Norueguês para os Refugiados e conselheiro do enviado da ONU para a Síria, Staffan de Mistura. Egeland foi talvez o diplomata mais optimista a falar durante o dia: “Parece-me que todos os membros [do Grupo Internacional de Apoio à Síria] querem fazer chegar ajuda às áreas cercadas e mais remotas.”
Vai ser o primeiro teste, ainda antes de se perceber se há condições para as armas (ou algumas) se calarem. Outro grupo de trabalho, este liderado por russos e norte-americanos, “vai trabalhar para desenvolver as modalidades para uma cessação da violência de longo prazo”, disse Kerry.
O texto assinado em Munique é vago e, por isso, fraco, mas só foi possível pela urgência humanitária, em crescendo desde o início da ofensiva em Alepo. Entre 500 mil e um milhão de pessoas precisam de ajuda alimentar e estão em zonas onde o conflito impede as agências da ONU e as ONG de chegarem.
A longo prazo, as probabilidades de que este seja o início de uma solução duradoura são muito ténues. Mas só o facto de existirem conta, cinco anos depois do início de uma revolta pacífica contra Assad que acabou por se transformar num conflito regional que já matou centenas de milhares de sírios e obrigou mais de 11 milhões a fugirem das suas casas.
Entretanto, Assad e Moscovo ganharam mais uns dias para continuar a bombardear alvos em Alepo e tentar conquistar os acessos à fronteira turca. E muitos, como a investigadora Lina Khatib, do think tank Arab Reform Initiative, já dão a Síria praticamente como perdida. “O grande vencedor deste jogo perigoso é o extremismo”, escreve, num texto publicado no Guardian.
Como avisam há muito opositores sírios, Khatib antecipa que, “apanhados entre o regime e os seus aliados, por um lado, e o Daash, por outro, muitos combatentes vão ser empurrados para alianças de conveniência com grupos radicais”. Se isso acontecer, a estratégia de Moscovo e Damasco “terá funcionado, e na Síria existirão apenas dois grandes grupos, o regime e os radicais; nessa altura, não haverá apoio externo suficiente que permita erradicar os extremistas da Síria”.