É dos Deolinda um dos melhores álbuns da música popular portuguesa da década
Quando mostra o álbum a amigos, Ana Bacalhau compara os “aahhh” de susto e necessidade de reanimação, com os “ooooh” de espanto, ganhando claramente os segundos. Outras Histórias é um dos melhores álbuns da música popular portuguesa da última década.
Há sete anos, ali para os lados de Santarém ou Alpiarça – a memória já não chega para a microafinação geográfica –, os Deolinda cruzaram-se com “um mix muito chunga, feito à pressão” por alguém que, a partir de uma barraca improvisada, contaminava o ar com as suas escolhas musicais. Das colunas soltava-se então uma sinistra fusão entre duas canções de parentesco improvável: Kalemba (Wegue Wegue), dos Buraka Som Sistema, e Movimento Perpétuo Associativo, dos próprios Deolinda. A “rima pesada tipo embondeiro” de Angola à conquista do mundo, uma celebração de peito feito, toda ela vaidade e amor-próprio, colada à sátira do laxismo português, ao desfile da lista de desculpas para o sofá ou a mesa de café vencerem sempre a vontade de mudança, em que a passividade dá uma tareia à acção sem precisar de mexer um dedo. Uma música feita de ritmo suado, peganhento, animado por um beat cuspido pelo computador; a outra desligada da corrente, um hino a pensar no queixume como desporto nacional e nas multidões que vestem fato-de-treino para melhor gozar o descanso.
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Há sete anos, ali para os lados de Santarém ou Alpiarça – a memória já não chega para a microafinação geográfica –, os Deolinda cruzaram-se com “um mix muito chunga, feito à pressão” por alguém que, a partir de uma barraca improvisada, contaminava o ar com as suas escolhas musicais. Das colunas soltava-se então uma sinistra fusão entre duas canções de parentesco improvável: Kalemba (Wegue Wegue), dos Buraka Som Sistema, e Movimento Perpétuo Associativo, dos próprios Deolinda. A “rima pesada tipo embondeiro” de Angola à conquista do mundo, uma celebração de peito feito, toda ela vaidade e amor-próprio, colada à sátira do laxismo português, ao desfile da lista de desculpas para o sofá ou a mesa de café vencerem sempre a vontade de mudança, em que a passividade dá uma tareia à acção sem precisar de mexer um dedo. Uma música feita de ritmo suado, peganhento, animado por um beat cuspido pelo computador; a outra desligada da corrente, um hino a pensar no queixume como desporto nacional e nas multidões que vestem fato-de-treino para melhor gozar o descanso.
Essa mistura tosca, risível e mal parida parece agora, à distância, saída de mãos mais visionárias do que desajeitadas. A Velha e o DJ, o tema mais obviamente surpreendente de Outras Histórias, quarto álbum dos Deolinda, faz essa mesma síntese e actualiza a canção popular num funaná impulsionado por Riot (dos Buraka), sobre o qual se agitam as guitarras acústicas, o contrabaixo e a voz habituais do grupo. Há sete anos, seria absurdo que uma canção do quarteto pudesse tomar tais caminhos, mas os DJ invadiram os terreiros de dança dos santos populares e, como diz o contrabaixista Zé Pedro Leitão, entre Alfama e o Lux a distância – não apenas física – “também não é assim tanta”. Desde então, tal como nos anos 90 as guitarras eléctricas pilhadas ao hard rock disputaram aos acordeões as rédeas das festas de Verão, também os ritmos turbinados pela electrónica se tornaram aliados naturais de sardinhas no pão e jarros de tinto.
Desde o início que os discos dos Deolinda são ocupados com sucessivos exercícios em que se testa os limites da canção popular e, diz Pedro da Silva Martins, autor da totalidade das letras e das composições do grupo, “esse é ainda o caminho”. “É perceber o que pode ser e quais os limites da canção popular, e depois, dentro desses limites, tentar dar um outro passo, abrir outra porta, experimentar outro lugar onde nunca tenhamos estado. Se há continuação no grupo, a continuação é essa.” Em Outras Histórias o limite encontra-se fixado por A Velha e o DJ, tema que permanece “um ovni” para Pedro e que a todos obrigou a reflectir se o movimento expansionista teria ido longe de mais. Ainda havia Deolinda debaixo daquelas batidas em sobressalto?
“Quando o Riot mandou a primeira demo achei que o limite era esse”, admite Zé Pedro. “Mas hoje em dia, passados três meses, já não sinto ali estranheza.” É a reacção que têm aguardado, ansiosamente, quando mostram o novo álbum a amigos, tentando medir o choque de quem é apanhado de surpresa. A vocalista Ana Bacalhau compara os “aahhh…” de susto e necessidade de equipa de reanimação, com os “ooooh” de espanto e regabofe, ganhando claramente os segundos. “Seria talvez chocante”, aventa o guitarrista Luís José Martins, “se fosse uma canção em que isso surgisse de forma descabida.”
E não surge de forma descabida porque mesmo estes elementos que poderiam parecer estranhos à sua sonoridade seguem essa condição essencial da música pop que é tragar aquilo que não lhe pertence e torná-lo familiar antes que seja humanamente possível soletrar a palavra “heresia”. Nenhuma estranheza em Outras Histórias resiste à segunda audição. A consciência desse terreno belissimamente instável da pop, dessa promiscuidade celebrada com pompa em cada álbum de Madonna, Björk ou David Bowie (a que, por respeito, se chamou camaleónica), parece aqui ser lembrada por uma falsa citação de A Day in the Life, tema revolucionário dos Beatles que juntava numa só duas canções distintas. Em 1967, durante a gravação do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Paul McCartney e o produtor George Martin haviam de dirigir 24 compassos de uma orquestra de 40 elementos a tocar como se fizessem a contagem decrescente para a implosão, tentando responder a uma partitura que pouco estipulava para lá de um crescendo atonal e da progressão da nota mais grave até à mais aguda em cada instrumento.
Foi esse o exemplo passado pelos Deolinda ao músico e arranjador Filipe Melo juntamente com a encomenda para a composição da secção final do tema Nunca É Tarde – “queríamos um momento à la A Day in the Life, com som de orquestra a fritar”, comenta Ana Bacalhau. Todos reunidos, recorda o arranjador ao Ípsilon, experimentaram sobrepor a maqueta da música dos Deolinda ao excerto de uma peça do compositor húngaro György Ligeti tocado no YouTube e perceberam que a solução era, de facto, aquela. A parte complicada viria depois. “Foi um pincel porque eu sou muito organizado e não era fácil chegar a uma orquestra e dizer a metade dos músicos para fazer coisas aleatórias, dirigidas muito mais verbalmente do que escritas”, diz Melo. “Está a pagar-se uma orquestra, o estúdio que custa uma pipa de massa e um tipo a dizer aos músicos ‘toquem mais para cima’ ou ‘toquem mais para baixo’. É um risco e já assisti a correr muito mal.” Mas resultou. Depois foi uma questão de fazer a orquestra soar a “mil pessoas a gritar”.
Se é tentador ouvir em Nunca É Tarde uma pronunciada vénia aos Beatles e não custa a identificar no arranjo de cordas de Mau Acordar uma piscadela de olho aos Blur de The Universal – outro exemplo de banda insatisfeita com a canção popular como a conhecemos a cada momento, filiada no movimento contínuo de expansão sonora –, Canções que Tu Farias guarda uma homenagem dissimulada a António Variações. Escrita logo a seguir à participação dos Deolinda no espectáculo de homenagem a Variações no Rock in Rio Lisboa 2014, é uma tocante canção dedicada ao sentimento de orfandade de qualquer ouvinte diante da morte de um ídolo, lamentando as canções que ficaram por compor, por ouvir e, porque não?, por transformar o mundo. “Infelizmente, tenho muitos heróis que cabem ali”, diz Pedro. Cabe também um encanto que, para Luís, deve-se a “ser muito improvável escrever-se sobre isto, fazer uma canção sobre canções que não existem mas poderiam existir”.
Outras Histórias vive também desses tempos, de canções que não existem por ausência forçada do seu criador, mas também de uma Canção Aranha, uma delicada e traficada bossa nova, que se anuncia como uma canção antes de o ser, esperando ainda a hora certa para se apresentar enfim ao mundo. “Há canções que pedem tempo”, comenta Pedro da Silva Martins sobre esta canção que pede para não nascer já. Embora a letra se encaminhe depois para uma paixão em processo de fermentação e que aguarda apenas um empurrão final, Canção Aranha não deixa de conter no seu impulso inicial aquilo que soa a um post-it deixado pelo autor na guitarra (para se lembrar no dia seguinte que não vale a pena entrar em pânico se as ideias se ocultarem durante algumas semanas). “Tenho de estar muito tempo a mexer nas coisas e pode não acontecer nada nos dois primeiros meses” de composição, confessa. “Se continuar a insistir e tiver tempo, passado um mês faço num repente dez canções. Estas surgiram todas praticamente de uma assentada. Não foi como nos outros discos em que tinha muitas coisas já feitas e íamos gerindo.”
Springsteen e os cantautores
Um outro pânico – que, mais uma vez, traz à memória Paul McCartney e a sua desconfiança inicial com Yesterday – tomou conta de Pedro da Silva Martins depois de escrever aquela que é a canção de declarada manifestação política de Outras Histórias. “Isto não é nada que exista já?”, andou a perguntar a toda a volta, tentando certificar-se que não incorria num qualquer plágio involuntário. Como ninguém reconhecia este refrão de espessura operária, herdeiro do rock de mangas de camisa arregaçada e de punho em riste de Bruce Springsteen, “Bote Furado” foi avançando e plantou no novo álbum dos Deolinda esta ideia de exploração e ‘esmifranço’ do povo por parte dos governantes.
“Faço o que posso / e já muito eu faço / se lhes dou a mão / eles ficam-me com o braço / e ao fundo eu vou também” canta Ana Bacalhau antes de Bote Furado entrar nas águas de um rio Hudson com vista para New Jersey e carregadas de whiskey irlandês. E é com essa aura americano-irlandesa, de quem canta um protesto mascarado de festa, que a cantora pergunta “E a mim, quem é que me acode? / a mim, quem me dá a mão? / quem furou este meu bote / pede agora salvação”. Escrito como tema de fôlego político, “Bote Furado” degenerou ainda num outro momento de aflição quando, por malfadada coincidência, a sua ideia de naufrágio se alinhou temporalmente com a situação extrema dos refugiados sírios a caminho da Europa em embarcações de absoluta precariedade. De repente, dada a proximidade dos acontecimentos, “a leitura pouco feliz” que se podia extrair do tema levou a aplicar travões a fundo.
Após uma primeira visita aos Estúdios Boom, de Pedro Abrunhosa, onde o grupo tinha já gravado Mundo Pequenino e reincidiu agora com Outras Histórias, Ana Bacalhau regravou a voz de Bote Furado depois de Pedro da Silva Martins reescrever os versos, limpando todas as correspondências que pudessem involuntariamente esbarrar no mau gosto. “A ideia da letra”, sublinha Pedro, “foi sempre aquela metáfora em que quem nos pede para salvar o bote é quem fez o furo”. Não perdendo esse viço de protesto, Bote Furado sai depois do refrão para entabular um trecho em que só com muito esforço não se ouve e vê o dedo de Fausto Bordalo Dias a brandir a acusação de que “quem podia salvar-nos disto / ai, é isto que quer / é mesmo isto que quer!”
Fausto é apenas um dos cantautores com que a música dos Deolinda continuadamente se cruza. Em Outras Histórias, não é preciso um faro muito apurado para descobrir o rasto de Sérgio Godinho e de José Afonso. O primeiro está por todo o lado em Berbicacho, história de um Viriato esquecido do seu papel (dividido entre a mulher e a amante), um Viriato que se adivinha primo direito da “Etelvina” de Godinho, miúda de rua e conhecida dos reformatórios, farta de viver sozinha nessoutra canção. O segundo está à vista no garboso tema final Dançar de Olhos Fechados, balada em que as cordas da guitarra se enleiam nas da harpa desfiando uma fragilidade que deslumbra e em que se pressente, a cada segundo, o fantasma do Zeca de Era Um Redondo Vocábulo.
Sortido rico
Dançar de Olhos Fechados encerra o disco com uma nota mais poética, ausente da mundanidade que ocupa o resto do álbum. Essa mundanidade que constitui a matriz narrativa das pequenas histórias, as outras histórias que sempre foram a espinha dorsal do cancioneiro dos Deolinda, em que se vai formando o cada vez mais amplo retrato de um país a partir de um conjunto de pequenos nadas que poucos autores acharão dignos de uma canção e que muitos menos conseguirão – como o faz Pedro da Silva Martins – elevar a impagável incisão do bisturi no dia-a-dia. E o sortido volta a ser rico, dos maus humores matinais no comboio do Cacém até ao Rossio, dos simples gestos de humanidade que fazem de cada dia um dia melhor; às invejas de algibeira e aos azares de passar o ano a sonhar com férias e o tempo, chegada a hora, não ajudar; às avós/sogras que identificam de forma muito particular qualidades e defeitos da sua descendência; ou ao casal desligado, intoxicado e adormecido pelo peso dos dias, das semanas, dos anos (comovente dueto de Ana Bacalhau com Manel Cruz, em Desavindos).
“Acho que há muita dignidade quando se consegue falar de coisas simples de uma forma artística”, argumenta Pedro. A procura dessa “temática banal” (e da dupla recusa em se refugiar em abstracções que nada dizem ou em tentar desenterrar o sentido da vida / dissertar sobre os grandes assuntos de letra maiúscula como o Tempo ou a Morte) funciona também como reforço da busca pelo território popular. A mesma busca pelo popular que faz com que Bom Partido avance em modo Quim Barreiros (“essa é tocada no tempo com que o Quim Barreiros costuma gravar, o tempo do bailarico”, descodifica Zé Pedro), desfeito depois por um ritmo brasileiro, quase baião, transformando inesperadamente a canção no produto de um outro baile, mais serpenteante.
Após Mundo Pequenino, gravado com o produtor inglês Jerry Boys (homem que gravou Rolling Stones, Ali Farka Touré ou Buena Vista Social Club), a banda decidiu prescindir desses ouvidos mais virgens no léxico musical português, promovendo, no entanto, João Bessa (que assistira Boys) ao posto de produtor. A vantagem era evidente: não só Bessa fizera parte da equipa que começou, no disco anterior, a mexer no equilíbrio perfeito da banda até então, trancado na sonoridade de quarteto, como o mapa musical e geracional passou a ser coincidente. Se Boys ajudou a desvendar o que podiam ser os Deolinda numa versão alargada, a maior segurança e confiança com que partiram agora para estúdio não exigia uma completa alteração de paradigma. Zé Pedro Leitão acredita, por isso, que essa maior proximidade funcionou como “uma falsa segurança”. “Se calhar esticámos ainda mais o nosso som do que tínhamos feito antes – o Jerry era mais clássico.”
Outras Histórias escapa igualmente à sina de Dois Selos e Um Carimbo. O segundo álbum dos Deolinda teve, então, uma reacção morna, sofrendo com a sua condição de sucessor de Canção ao Lado, sem que as regras do jogo se tivessem verdadeiramente alterado. “Eram discos de tocar ao vivo”, resume Luís Martins, e partilhavam uma mesma ideia sonora. A partir de Mundo Pequenino os álbuns passaram a ser pensados como criações de estúdio, valendo-se de um arsenal de instrumentos e soluções que não são replicáveis por inteiro ao vivo. Outras Histórias não se deixa ensombrar pela experiência de Mundo Pequenino, antes descola para um admirável mundo novo da canção popular do grupo, surpreendendo até na magnífica paleta de criatividade melódica que se solta da boca de Ana Bacalhau – em Bons Dias assume um refrão com uma voz quase miada, em Corzinha de Verão disfarça-se de cantora de blues, por todo o disco o seu trabalho vocal é de uma espantosa riqueza de detalhes.
E pensar que, pegando num verso de Mau Acordar, estiveram quase a baptizar o disco com Outra Desgraça, pela piada de poderem ver anunciado “Deolinda editam Outra Desgraça”. Seria somente uma piada, claro. Injusta para com um dos melhores álbuns da música popular portuguesa da última década.