Não queremos um museu só para brancos
O Rijksmuseum, na Holanda, está a tirar dos nomes das obras da sua colecção palavras como “preto” e “escravo”. Para uns está a actualizar a linguagem. Para outros a editar a História. Está lançado o debate. E em Portugal?
Ao longo de anos, o Rijskmuseum foi recebendo comentários de visitantes sobre as legendas “não inclusivas” que acompanhavam algumas das obras da sua colecção. As pessoas diziam-se “incomodadas” com um ou outro termo e chamavam a atenção dos responsáveis do museu para a necessidade de “actualizar” a linguagem dos materiais à disposição do público nas galerias e fora delas, nas publicações da casa ou até mesmo na sua página na Internet.
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Ao longo de anos, o Rijskmuseum foi recebendo comentários de visitantes sobre as legendas “não inclusivas” que acompanhavam algumas das obras da sua colecção. As pessoas diziam-se “incomodadas” com um ou outro termo e chamavam a atenção dos responsáveis do museu para a necessidade de “actualizar” a linguagem dos materiais à disposição do público nas galerias e fora delas, nas publicações da casa ou até mesmo na sua página na Internet.
Foi para dar resposta a este desconforto de alguns visitantes, na sua maioria pertencentes a minorias étnicas, que a direcção do museu decidiu recentemente alterar alguns dos títulos de pinturas, desenhos, gravuras e fotografias do seu acervo, para eliminar palavras como “preto”, “negro”, “esquimó”, “mouro”, “anão” ou “selvagem”. Uma tarefa “gigantesca” – a colecção deste Museu Nacional da Holanda, em Amesterdão, reúne mais de um milhão de objectos – que está ainda a dar os primeiros passos, explica ao Ípsilon Boris de Munnick, director de comunicação, mas que já lançou o debate entre historiadores, críticos de arte, conservadores e directores de museus. Os que são a favor da medida defendem que abdicar de palavras com uma carga claramente pejorativa ou até mesmo racista é uma forma de tornar os museus mais inclusivos e de abandonar, de vez, um discurso absolutamente eurocêntrico, reflexo de um mundo feito de colonizadores e colonizados que já não existe. Os que contestam o projecto garantem que anular as palavras hoje consideradas ofensivas é branquear a história, que tantas vezes foi marcada pela violência e o preconceito que os nomes destas obras reflectem.
É possível ser-se sensível aos argumentos de um e outro lado mas, se estivéssemos à frente de um museu e fôssemos chamados a decidir, o que faríamos perante uma pintura como Jovem Negra (c. 1900), de Simon Maris? Mudaríamos a legenda, como fez o Rijksmuseum, para Jovem Segurando um Leque ou deixaríamos tudo como estava?
Para a equipa do Rijksmuseum, considerado o Melhor Museu Europeu no ano passado, retirar termos que hoje facilmente consideramos preconceituosos é simplesmente uma garantia de que todos se sentirão bem vindos nas suas galerias ou a viajar pelo seu website. “As minorias também têm de se reconhecer num museu nacional, nas histórias que ele conta. Não queremos ser um museu só para brancos, onde outras etnias não se revejam, onde alguém sinta que tem a obrigação de escrever um manifesto contra o racismo por causa de uma legenda”, justifica o seu director de comunicação, garantindo que tudo está a ser feito com muito cuidado pelos conservadores de cada departamento, com o de História à cabeça, e ouvindo especialistas externos e representantes das minorias.
Uma questão de princípio
Mas esta tarefa está longe de ser simples. Se há palavras que, à partida, podem parecer fáceis de rejeitar, o contexto de produção da própria obra, ou o da época em que lhe foi dado o nome que hoje tem, pode complicar tudo ou, pelo menos, gerar discussões intermináveis entre os conservadores. Sobretudo se a estratégia, quando se trata de minorias, é ser o mais preciso possível em relação às origens de cada figura.
Peguemos, sugere De Munnick, no exemplo dos povos roma – “ninguém discute que o termo ‘cigano’ seja negativo e é fácil trocá-lo por ‘roma’, mas o que fazer quando a pintura é do século XVII e não sabemos se as pessoas que ali nos são mostradas se consideravam roma? Pela origem, sabemos que são da Europa central, mas seriam de etnia sinti? É o mais provável, mas como fazer para não abdicar do rigor?”. Neste caso, como numa outra pintura de Michiel van Musscher, Thomas Hees com os seus primos Jan e Andries Hees e um criado (1687), a equipa ainda não se decidiu por um novo título. Aqui está em causa o facto de ‘criado’ ser, neste contexto, enganador: “O rapaz negro que aparece neste quadro era tratado como um escravo, embora a escravatura já fosse proibida na Holanda nessa altura. Ainda não chegámos a nenhuma conclusão sobre o que lhe chamar…” Se a equipa se decidir por referir a sua verdadeira condição, certo é que não usará o termo “escravo” mas “escravizado”, porque, explica De Munnick, “é política do Rijksmuseum seguir o princípio de que ninguém nasce escravo, mas se torna escravo pela acção de outros”.
Da gigantesca colecção deste museu nacional que em 2014 teve 2,5 milhões de visitantes, 8000 peças estão em exposição permanente, entre elas muitos objectos como taças de cerâmica, vidros ou relógios, que não levantam quaisquer problemas. É nas pinturas, desenhos, gravuras e fotografias que se concentrará a revisão das descrições. E mesmo aí, e findo o projecto que designam por Adaptação da Terminologia Colonial (não há ainda uma data limite), não deverão ser mais de 300 as obras com o nome alterado, nas galerias e reservas. Cem foram já modificadas e, garante o técnico do Rijksmuseum, ainda nenhum visitante parece ter dado por isso. “Não é estranho, porque muitas das coisas são pormenores. Às vezes o nome permanece, mas é a tabela que descreve a obra que perde palavras ou frases inteiras. E muitas vezes as pessoas não lêem as tabelas.” É o caso de O Banho de Bathsheba (1594), de Cornelis van Haarlem, que mantém o nome mas vê omitida a frase “porque uma das criadas de Bathsheba é negra, esta pintura ganha um sabor exótico”.
Entre as 23 palavras que a equipa vai remover dos materiais do museu, substituindo-os por “qualitativos neutros”, por regra mais rigorosos que os termos discriminatórios usados no passado, está uma palavra que para a maioria dos leitores portugueses será estranha, mas que é muito comum no contexto do império holandês – “hotentote”, termo popular que deriva certamente de uma alcunha que foi dada pelos colonos do século XVII aos membros de um povo da África austral que se autodenomina Khoikhoi. Esta palavra que é usada 39 vezes em obras desta colecção significava “gago” e era usada por referência ao idioma deste povo, que implicava fazer muitos estalidos com a língua. “Porquê usar uma alcunha num nome oficial? E porquê usar a palavra ‘negro’ quando a cor da pele, para além de não interessar para a descrição, é óbvia para quem olha?” É assim em Jovem rapariga negra em frente a um cemitério, uma fotografia de 1910, de Meisje bij Kerkhof, que agora se designa por Rapariga do Suriname em frente a um cemitério, possivelmente em Paramaribo.
Numa gravura de 1805, Esquimó em fuga, precisou-se o povo indígena do Árctico representado, e passou a ler-se Inuit em fuga. A ideia é “não usar nomes dados pelos brancos a outros”, disse ao jornal Times Martine Gosselink, directora do departamento de História do museu e responsável pelo projecto, quando a polémica se instalou, respondendo a acusações de “revisionismo”.
Garantindo que os velhos nomes com termos coloniais serão mantidos em arquivo para memória futura, para que não se perca o contexto nem o trabalho autoral, no caso de serem dados pelos próprios artistas, a conservadora argumenta que a língua evolui, tal como o enquadramento em que é usada, e que não deve ser imutável. E, para tornar tudo mais claro, exemplifica: “A nós, os holandeses, chamam-nos, por vezes, ‘kaas kop’, ‘cabeças de queijo’… Não gostaríamos de entrar num museu no estrangeiro e ver uma imagem descrita como ‘mulher cabeça de queijo com criança cabeça de queijo’. É exactamente isso que acontece aqui.”
Só na Holanda há um milhão de pessoas com raízes coloniais no Suriname, nas Antilhas ou na Indonésia. Faz sentido que essas pessoas se vejam confrontadas com termos pejorativos nas paredes de um museu?, pergunta a equipa de Gosselink.
Superioridade moral?
Os que se opõem a este projecto do museu holandês, que já mereceu o apoio público do Comité Internacional de Museus (ICOM), defendem que leva longe de mais o politicamente correcto e que se arrisca a “editar a História”, partindo de uma certa “superioridade moral” que no passado deu origem a tantas das discriminações que agora quer ver corrigidas.
Argumentam que usar determinadas palavras que hoje causam “desconforto”, para recorrer ao termo que De Munnick vai buscar com frequência, não significa que se está a dar um “aval” a uma atitude racista ou sexista, significa apenas que se está a respeitar o contexto de criação destas pinturas e desenhos, mesmo quando a esmagadora maioria dos títulos que hoje vemos nos museus são produto de convenções que não têm mais de 100 ou 150 anos, e não obra dos respectivos autores.
Tal como a Holanda, também Portugal teve um império colonial, também Portugal procurou impor um modelo de civilização a povos muito diferentes que encontrou na América do Sul, em África ou na Ásia. Também Portugal tem nos seus museus obras que vêm desse passado, que se referem a negros ou mouros e que mostram claramente que, a dado momento da sua história, a escravatura e a discriminação eram aceites como produtos naturais de uma hegemonia.
São Tiago combatendo os mouros, um dos oito painéis da vida e milagres de Santiago (c.1520, obra atribuída ao Mestre da Lourinhã), que provêm do retábulo maior da Igreja de Santiago do Castelo de Palmela, hoje na colecção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), não passaria, provavelmente, no crivo da equipa de Amesterdão. José Alberto Seabra Carvalho, historiador de arte e director adjunto do museu, não vê razões para alterar este nome dado há mais de um século e garante que nunca o MNAA recebeu queixas de visitantes em relação a “palavras ofensivas” nas suas legendas e tabelas.
Isto pode dever-se ao facto de Arte Antiga ter já uma linguagem “filtrada com muita piedade moderna”, explica ao Ípsilon, mas também às características dos visitantes: “O nosso público tem uma capacidade crítica subliminar em relação a estas matérias – enquadra-as no contexto. Este tipo de revisão faz mais sentido nos países do norte da Europa, de tradição protestante, calvinista, em que palavras como ‘mouro’ ou ‘negro’ têm outro peso e podem ser hoje um problema. Até porque estão muito presentes em legendas e tabelas, o que não acontece tanto aqui.”
É por isso que este conservador de pintura se opõe fortemente a uma hipotética norma geral do ICOM para que se venham a fazer alterações semelhantes às do Rijkmuseum em todos os museus europeus. E não é porque rejeite qualquer actualização da linguagem – “a comunicação dos museus não se faz hoje para o século XVII, faz-se para o século XXI”, diz –, mas porque se o contexto de produção da obra é importante e não deve perder-se, o contexto do museu que a expõe também o é.
“Um museu com uma colecção histórica como o nosso luta todos os dias contra o anacronismo. Está na sua natureza. Podemos fazer alterações, claro, mas não podemos deixar que uma revisão de acordo com critérios modernos venha a pôr em causa o facto de os museus serem um paradigma da memória das coisas”, defende, lembrando que são também um espaço de “dessacralização e democratização”, já que dão amplo acesso a obras que já foram arrancadas dos contextos para que foram criadas: uma capela muito escura, um quarto a que poucos tinha acesso, um palácio que já não existe…
“No caso do nosso São Tiago podia ter-se usado a descrição iconograficamente aceite dos espanhóis, do “mata mouros”, mas não se fez porque para este museu não fazia sentido”, explica. Pegando num exemplo do Museu de Évora, uma pintura em que D. Afonso VI é representado ao lado de um pajem negro, Seabra Carvalho defende até que se mantenham as pequenas tabelas antigas sobre as molduras, mesmo quando trazem informações erradas. “Em Évora há uma pintura que tem na moldura a legenda ‘D. Afonso brinca com o preto’ [colocada na década de 1940], que hoje não se escreveria [no site do museu a obra vem identificada, aliás, como D. Afonso VI, infante], mas mantém-se como documento. Aqui temos atribuições a autores que sabemos não serem as certas, mas mantemos. A linguagem da História não tem de ser ‘clinicamente’ correcta.”
O crítico do diário britânico The Guardian concorda com a importância do contexto na produção e fruição da arte, mas é absolutamente a favor que se façam alterações como as que o Museu Nacional da Holanda tem em curso.
“O Rijksmuseum está certo. O grande museu de Amesterdão, a casa de A Ronda da Noite, de Rembrandt (ele nunca lhe chamou assim, já agora), não está a trair a história. Está simplesmente a fazer uma alteração razoável, racional, em títulos que são, e sempre foram, mutáveis e fruto das contingências”, escreve. Lembra o crítico de arte que Velázquez não chamou ao seu célebre retrato da corte espanhola As Meninas e que o David de Miguel Ângelo era conhecido como “o gigante” pelos seus contemporâneos.
Se os títulos de uma obra literária são dela indissociáveis, o mesmo não se passa no domínio das artes visuais. “Se um título antiquado atrapalha o público de hoje pode e deve ser alterado”, defende Jones. “Além do mais, qualquer pessoa que seja nostálgica da palavra ‘preto’ está verdadeiramente do lado errado da História.”
Sempre a desigualdade
A historiadora Filipa Lowndes Vicente, que coordenou a obra O Império da Visão. A Fotografia no Contexto Colonial português (1860-1960), é mais entusiasta do que o conservador do MNAA de projectos como o do Rijksmusem, embora não tenha uma resposta de “sim” ou “não” quando lhe perguntamos se concorda com este tipo de revisão do discurso museológico.
Assumindo-se a favor do politicamente correcto, Vicente, que é também autora de A Arte Sem História, volume que reflecte sobre a forma como a história de arte tem vindo a olhar para a produção artística no feminino, ignorando-a ou subvalorizando-a durante tanto tempo, diz que, para já, Amesterdão teve o mérito de lançar o debate e de pôr os museus, “que tantas vezes expõem obras de forma absolutamente acrítica”, a pensar no que mostram e em como mostram.
As bibliotecas, os arquivos e os museus estão repletos de documentos escritos, visuais e artísticos extremamente insultuosos em relação a vários grupos étnicos e às mulheres, sobretudo os arquivos coloniais, acrescenta, o que constitui um desafio para as pessoas que trabalham com estes materiais. “Temos o direito de mostrar imagens de mulheres negras realizadas nos anos 1930 em sites de divulgação histórica? Não estaremos assim a reproduzir a violência étnica e patriarcal subjacente à produção destas imagens? Por outro lado, como podemos estudar criticamente o racismo, a desigualdade, a discriminação em relação às mulheres sem invocar, citar, mostrar os documentos que dão deles prova provam?”, pergunta a historiadora.
Para Filipa Vicente não basta tirar uma palavra de um título. O importante é que o museu tome consciência dos contextos de produção das suas colecções, tantas vezes inseparáveis de “profundas desigualdades” e discriminações, e que saiba comunicá-los aos visitantes. Só assim fará o seu papel, contribuindo para o debate crítico e para a formação de públicos que não perpetuem modelos de intolerância e de violência.
“Os problemas que as minorias étnicas enfrentam nos museus são muito parecidos com os das mulheres”, adverte a historiadora – “há palavras que as ferem”, é certo, “mas tudo começa muito antes, com a “falta de representação das artistas” ou a forma como se mostra o corpo feminino. Há um grupo de artistas feministas norte-americano, que desde os anos 1980 denuncia o machismo e o racismo no mundo da arte, lembra Vicente, e que teve já uma campanha defendendo que, para entrar no Metropolitan de Nova Iorque, uma mulher tem mais hipóteses se estiver nua – “o que queriam dizer com isto é que todo o cânone artístico da arte ocidental é feito de homens a pintar mulheres nuas, e que os principais museus do mundo têm feito muito pouco para alterar o seu discurso em relação à arte no feminino. Os artistas das minorias também estão pouco representados e são poucos os que ficam incomodados com isso”.
O Museu Rainha Sofia, em Madrid, está entre as excepções, já que tem há anos percursos específicos, que fazem uma leitura do seu acervo a partir de uma perspectiva feminina. O Prado, ali bem perto, demorou mais a apanhar este comboio da “democratização dos olhares” – só no fim deste ano terá a sua primeira exposição dedicada em exclusivo a uma mulher, Clara Peeters, uma pintora flamenga formada na tradição barroca.
A discussão não é nova, explica a historiadora – já no século XVIII Mary Wollstonecraft, escritora e feminista inglesa, alertava para a discriminação das mulheres –, mas pouco se fez ainda em países como Portugal. “O Museu do Chiado praticamente não tem mulheres artistas expostas e não sente necessidade nenhuma de explicar porquê”, exemplifica.
Mulheres ou minorias étnicas, resume, é um “problema de desigualdade”. E não se resolve sem debate. “Estudar – e assumir – o racismo inerente à produção de um documento, desde que feito de um modo consciente e crítico, pode ser também um modo de denunciar esse mesmo racismo e de o contrariar.”
Sem as mulheres e as minorias étnicas que o “cânone” tantas vezes tem excluído, a narrativa que cada um pode construir quando percorre as galerias de um museu ficará enviesada, conclui a historiadora. “Será sempre uma história parcial, que deixa de fora muita gente. Será sempre uma história com menos diferença e, por isso, muito mais desinteressante.”
Notícia corrigida às 13h30 de dia 22 de Fevereiro para substituir a palavra "dialecto" por "idioma" no oitavo parágrafo