Aleksandr Soljenítsin, um gigante de outras eras

Aleksandr Soljenítsin é um gigante de outras eras. Não admirará que as narrativas reunidas neste livro se mostrem obcecadas pelo passado russo.

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Aleksandr Soljenítsin, um gigante de outras eras Pascal Le Segretain

Bem e para o mal, para o melhor e para o pior, Aleksandr Soljenítsin (1918-2008) é um gigante de outras eras. Não admirará que as narrativas reunidas neste livro – e que, não obstante a sua extensão, nos parecem por vezes bosquejos de contos ou novelas – se mostrem obcecadas pelo passado russo. Tendo alinhado com a aurora soviética, Soljenítsin foi um heróico combatente na Segunda Guerra Mundial, para logo a seguir ser condenado ao Gulag. Regressado, oito anos depois, do trágico “arquipélago”, publicou Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, que lhe deu fama imediata, na URSS e no Ocidente. Mas a desestalinização iniciada na década de 1950 não impediu que o escritor fosse expulso da União Soviética em 1974, quatro anos após a concessão do Prémio Nobel da Literatura. Viveu quase vinte anos nos Estados Unidos, só tendo regressado à Rússia em 1994. Padeceu e verberou o pior dos dois mundos: a tirania estalinista e a “cobardia” ocidental. Radicalmente ortodoxo, hostil a modernices ideológicas ou espirituais, desiludido pelo rumo da nova Rússia, acabou elogiando Putin… Em Portugal, foi publicado ainda antes do 25 de Abril de 1974, mas seria no imediato pós-revolução que a denúncia do Gulag seria entusiasticamente aproveitada para os incandescentes combates políticos e ideológicos do momento. Com isto, e durante excessivo tempo, Soljenítsin terá sido mais valorizado enquanto intelectual anti-soviético e anticomunista, do que enquanto escritor.

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Bem e para o mal, para o melhor e para o pior, Aleksandr Soljenítsin (1918-2008) é um gigante de outras eras. Não admirará que as narrativas reunidas neste livro – e que, não obstante a sua extensão, nos parecem por vezes bosquejos de contos ou novelas – se mostrem obcecadas pelo passado russo. Tendo alinhado com a aurora soviética, Soljenítsin foi um heróico combatente na Segunda Guerra Mundial, para logo a seguir ser condenado ao Gulag. Regressado, oito anos depois, do trágico “arquipélago”, publicou Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, que lhe deu fama imediata, na URSS e no Ocidente. Mas a desestalinização iniciada na década de 1950 não impediu que o escritor fosse expulso da União Soviética em 1974, quatro anos após a concessão do Prémio Nobel da Literatura. Viveu quase vinte anos nos Estados Unidos, só tendo regressado à Rússia em 1994. Padeceu e verberou o pior dos dois mundos: a tirania estalinista e a “cobardia” ocidental. Radicalmente ortodoxo, hostil a modernices ideológicas ou espirituais, desiludido pelo rumo da nova Rússia, acabou elogiando Putin… Em Portugal, foi publicado ainda antes do 25 de Abril de 1974, mas seria no imediato pós-revolução que a denúncia do Gulag seria entusiasticamente aproveitada para os incandescentes combates políticos e ideológicos do momento. Com isto, e durante excessivo tempo, Soljenítsin terá sido mais valorizado enquanto intelectual anti-soviético e anticomunista, do que enquanto escritor.

O presente volume colige nove contos de variável extensão, os mais curtos tendo uma vintena de páginas, os mais longos ultrapassando a meia centena. Foram escritos na década de 1990, a maior parte deles já depois do regresso de Soljenítsin à Rússia. Oito destes nove contos são estruturados em dois andamentos, formando um díptico, duas faces de uma mesma moeda. Em alguns casos, essas duas faces podem, no entanto, ser lidas como histórias autónomas. Assim, por exemplo, em Nástenka, que narra sucessivamente as vidas paralelas de duas raparigas, apenas o nome próprio compartilhado por ambas e o âmbito temporal da acção – os primeiros anos a seguir à Revolução de 1917 –, aparentam conformar a unidade do conto. A primeira Nástenka é uma pragmática rapariga do campo que abandona a sua condição de vítima para sobreviver e singrar, seguindo o ar do novo tempo soviético; a segunda é uma privilegiada e sonhadora citadina, uma professora, uma literata, que procura garantir a sobrevivência da “grande e boa literatura russa” num tempo em que os clássicos eram suspeitos de desviarem “os alunos da vida”. Em A Nossa Juventude, o conto mais breve do livro, há uma óbvia continuidade narrativa entre os seus dois ‘actos’. No primeiro, é-nos apresentado um professor de engenharia que (em acordo com a nova “política de instrução das massas”, que manda “suavizar as exigências”) se vê constrangido a aprovar um aluno manifestamente ignorante; no segundo acto, anos depois, quando “algumas pessoas começaram a desaparecer”, o professor é preso e reconhece, no polícia que o interroga, o seu antigo aluno. Ego conta a história de Ektov, um “activista culto” e bem-intencionado, um “humanista”, um daqueles russos que acreditaram, nos primeiros anos após a Revolução, que “os excessos dos bolcheviques eram devidos […] às dificuldades herdadas de três anos de guerra e à guerra civil que logo se lhe seguiu” e que em breve a Rússia “voltaria a uma vida que agora já seria democrática”; na segunda metade do conto, Ektov, já detido, tenta escapar ao aliciamento e à chantagem da Tcheka (antecessora do KGB) e acompanhá-lo-emos no seu dilema: sacrificar o seu ideal democrático ou a sua família? O conto não acaba bem.

Pelo arco de tempo coberto pela narração e pela relevância histórica do protagonista – o mítico marechal Gueórgui Júkov (1896-1974), que comandou o Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial, derrotou e repeliu os invasores nazis e ocupou Berlin –, Nos Limites é talvez o conto mais ambicioso. É também um brevíssimo retrato impiedoso do impiedoso Estaline. Na segunda parte da narração, o velho militar, sobrevivente de várias purgas e outras tantas reabilitações, antes e depois da morte de Estaline, tenta pôr em ordem memórias e consciência. Sem grande sucesso: “A simples abundância das recordações é o bastante para desencorajar”. No conto O Povoado de Jeliábuga, um dos mais extensos, um homem regressa, 52 anos depois, ao local onde combateu durante a Segunda Guerra Mundial. A uma primeira parte de quase exaltação sensual da acção guerreira, segue-se uma outra, contemplativa e nostálgica: “E no céu um silêncio total. Possivelmente aqui nunca voam aviões e até o som deles está esquecido. E também o som dos obuses. Mas naquele tempo, como eles atroavam…” De pobres diabos com excesso de zelo e de chefias autocomplacentes, de corrupção e oportunismo, antes e depois da “perestroika”, se fala em Tanto Faz. Um conto de uma estranha actualidade, onde não faltam privatizações apressadas, hidroeléctricas construídas em tal quantidade que metade delas “não encontra aplicação”, e empresas onde “para cada trabalhador, três mestres-de-obras, e todos sem trabalho. E quem se soube arranjar, meteu milhões ao bolso. […] Roubam à grande, não são como nós, e sabem ocultar-se, não há quem os apanhe.” Mas “falemos ou não falemos, ninguém nos ouve”. Enfim, tanto faz. Também sobre corrupção, e sobre a selvajaria capitalista e financeira que sucedeu às ilusões pós-estalinistas e à queda do regime soviético, se fala no conto Sobre as Fracturas, um dos mais sombrios. Adlig Schwenkitten, o extenso último conto, é o único que não obedece à estrutura bipartida dos anteriores. Subintitulado Novela de um dia, tem 24 secções e um epílogo. É um episódio militar, no avanço do Exército Vermelho pela Prússia em direcção ao Báltico. Será um dos mais monótonos, um dos mais desinteressantes deste volume, mas tem o mérito relativo de uma prosa disparada e objectiva.

A própria literatura constitui o tema dos dois mais interessantes momentos do livro, que ocorrem na segunda parte de Nástenka e, sobretudo, na segunda metade de Compota de Damasco, o conto que empresta o título ao volume. No primeiro caso, a já referida professora, educada na leitura dos grandes clássicos russos do século XIX, e na leitura da Lenda dos Nibelungos, dos versos de Schiller e dos sofrimentos do jovem Werther, é confrontada pela “literatura proletária” dos novos tempos: “Depois da revolução, são necessárias não apenas novas palavras, mas até novas letras! Até o ponto e vírgula de antes se torna repugnante. […] Shakespeare é um poeta de reis e de senhores, para que precisamos dele?” No segundo caso, e a pretexto de um encontro de um “professor de arte cinematográfica” com um “célebre Escritor” – um plumitivo que já escrevera tudo e o seu contrário, contra e a favor do novo regime, mas sempre “com um estilo tão entusiástico, como se fosse arrastado por uma tormenta de sinceridade” – debate-se o “realismo monumental” e a “literatura do herói positivo” que os novos tempos reclamavam. Ou era suposto.