As cordas em seara alheia
Tendo-se aventurado nos arranjos de cordas empurrado por Manuel João Vieira, Filipe Melo povoa agora o universo pop/rock de Deolinda, Legendary Tiger Man ou Old Jerusalem.
Quando Manuel João Vieira lhe encomendou dois arranjos de cordas para o álbum Mundo Catita (2001), Filipe Melo pouco se lembrava das aulas de orquestração que tivera – estava mais interessado em tocar piano do que em debruçar-se sobre partituras – e tinha começado a investir numa aprendizagem mais informal, através da transcrição, por exemplo, de arranjos de Nelson Riddle. Por sorte, o homem dos Irmãos Catita pediu-lhe então “uma coisa meio Sinatra”, tiro em cheio no alvo, uma vez que Riddle fora precisamente o municiador de vários clássicos de Sinatra nas décadas de 50 e 60. “Aliás, posso dizer que o primeiro arranjo que fiz para o Manuel João é uma cópia descarada de um arranjo do Nelson Riddle”, confessa Melo, defendendo que não é vergonha seguir atrás dos melhores.
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Quando Manuel João Vieira lhe encomendou dois arranjos de cordas para o álbum Mundo Catita (2001), Filipe Melo pouco se lembrava das aulas de orquestração que tivera – estava mais interessado em tocar piano do que em debruçar-se sobre partituras – e tinha começado a investir numa aprendizagem mais informal, através da transcrição, por exemplo, de arranjos de Nelson Riddle. Por sorte, o homem dos Irmãos Catita pediu-lhe então “uma coisa meio Sinatra”, tiro em cheio no alvo, uma vez que Riddle fora precisamente o municiador de vários clássicos de Sinatra nas décadas de 50 e 60. “Aliás, posso dizer que o primeiro arranjo que fiz para o Manuel João é uma cópia descarada de um arranjo do Nelson Riddle”, confessa Melo, defendendo que não é vergonha seguir atrás dos melhores.
Talvez esse tenha sido o início perfeito para alguém que fez o seu caminho a “ouvir, perceber como se faz e a transcrever arranjos”, contrariando a tendência generalizada de “quer na composição, quer nas orquestrações, procurar respostas na teoria em vez de procurar na música”. Em vez de confiar cegamente em soluções mágicas fornecidas por manuais com regras para todas as previstas intenções, Filipe Melo desvia-se da teoria e acredita que é ouvindo, criando cultura e acumulando reportório que se estabelece uma linguagem e se gera recursos. No seu caso, a cultura de arranjador vem tanto das orquestrações da grande canção americana (de que Riddle faz parte), como das bandas sonoras, das big bands ou da música clássica.
Se Filipe Melo se impressiona com a história de Shostakovich ter precisado apenas de 45 minutos para compor de memória uma orquestração para a canção Tea for Two, afirma-se um rendido admirador de gente como David Campbell (“um fora-de-série” chama ao pai de Beck, responsável pelos sumptuosos arranjos de cordas em Morning Phase e Sea Change, mas também em discos de Cat Power ou Miley Cyrus) e John Metcalfe (sobretudo pela sua colaboração em Scratch My Back e New Blood, de Peter Gabriel). Quando os Deolinda pediram a Melo um arranjo que tomasse por exemplo The Universal, dos Blur, para o tema Mau Acordar, o músico foi pesquisar e exultou ao encontrar de novo Metcalfe na sua vida. Depois, foi adaptar a ideia central de The Universal ao ambiente do tema que, na verdade, parecia já estar preparado para esse motivo musical.
Filipe Melo trabalhou ainda em Nunca É Tarde (“uma trabalheira terrível”, recriando a ideia de A Day in the Life, dos Beatles) e Desavindos do novo álbum dos Deolinda, naquele que reconhece ter sido o trabalho de arranjos mais difícil que assinou até hoje – chegou a fazer “oito ou nove versões diferentes” de um dos temas que “ia sempre parar a uma coisa meio pirosa que queria banir dali”). “É o princípio de sempre”, diz. “Estava a ouvir aquelas músicas e a pensar como dava a volta àquilo para não estragar.”
O mesmo sentimento que se manifestou quando, em 2007, teve a primeira grande encomenda de arranjos para o espectáculo Outras Canções II, em que Camané revisitava canções de Jacques Brel, Divine Comedy, Tony de Matos ou Chet Baker no São Luiz. Na altura, o orquestrador e maestro Pedro Moreira “estava com tanto trabalho” que decidiu passar-lhe alguns arranjos. “Foi um tal volume de trabalho que achei que não ia mesmo conseguir fazer e, na altura, aquilo metia medo porque os outros arranjadores eram o Pedro, o Mário Laginha e o Bernardo Sassetti. Eu era ali claramente o bandalho.”
Só que “o bandalho” atirou-se às pautas, graças aos conselhos de Moreira – “para seres um grande arranjador precisas de duas coisas: bom senso e bom gosto”, conselhos que Melo diz parecerem “tipo Yoda [personagem de Guerra das Estrelas]” mas que foram depois esmiuçados – e à ajuda de Laginha – “ligava a uma das pessoas mais criativas do mundo para pedir conselhos de Sibelius, o programa que todos utilizamos”, conta o músico. Mais recentemente, agora que estuda com o contrabaixista do Opus Ensemble Alejandro Erlich Oliva e depois de lá atrás ter também colaborado com JP Simões em 1970, Filipe foi-se tornando um nome comum na função de orquestrador de discos pop/rock, de Old Jerusalem (no novo A Rose Is a Rose Is a Rose) ou Legendary Tiger Man (em True), neste último mergulhando no pantanoso universo do homem-tigre como se ilustrasse um filme de John Carpenter.
A participação em True ajudou-o ainda a aprofundar a noção que lhe é cada vez mais cara de enquanto arranjador pensar como um actor, assumindo um papel de peão num filme que não lhe pertence.