Uma viagem no tempo no “Central Park” do Porto
Há várias visitas que se podem fazer no Palácio de Cristal: à arquitectura, à escultura e arte pública, mas também à fauna e principalmente à flora que fazem deste recinto inaugurado há 150 anos um lugar incontornável no Porto, e um laboratório vivo da evolução da relação do homem com a natureza.
Continuamos a chamar-lhe Palácio de Cristal, mesmo se o dito palácio foi demolido há bem mais de meio século (1951). Mas é o imaginário desse edifício icónico inaugurado há 150 anos que se mantém na memória dos portuenses, na maior parte dos casos apenas sustentada na imagem de velhas fotografias e postais ilustrados, descoloridos mas mantendo a irresistível patine do tempo.
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Continuamos a chamar-lhe Palácio de Cristal, mesmo se o dito palácio foi demolido há bem mais de meio século (1951). Mas é o imaginário desse edifício icónico inaugurado há 150 anos que se mantém na memória dos portuenses, na maior parte dos casos apenas sustentada na imagem de velhas fotografias e postais ilustrados, descoloridos mas mantendo a irresistível patine do tempo.
A história do Palácio de Cristal está a ser recordada no Porto desde 18 de Setembro de 2015, dia em que se assinalou o século e meio da abertura da 1.ª Exposição Internacional Portuguesa (1865), iniciativa de um grupo de empresários e comerciantes da cidade liderado por Alfredo Allen.
Depois de uma exposição iconográfica documental apresentada nos próprios jardins do Palácio, a Fundação de Serralves acolheu, nos dias 1 e 2 de Fevereiro, uma conferência internacional que permitiu situar a história do Palácio de Cristal no contexto das grandes exposições mundiais, entre a primeira realizada no Hyde Park de Londres, em 1851, e a Exposição Internacional das Artes e Técnicas na Vida Moderna, em Paris, em 1937 – as duas balizas sendo justificadas pela proximidade da primeira exposição portuguesa com a da capital inglesa, e também pelo facto de o evento da capital francesa ter sido planeado pelo arquitecto paisagista Jacques Gréber, o mesmo que desenhou os jardins de Serralves para o 2.º conde de Vizela.
Os dois dias de conferências permitiram revisitar a história desse ciclo de exposições com um enfoque especial na relação dos jardins com a arquitectura e a paisagem urbana. E o PÚBLICO aproveitou a iniciativa para regressar, entre a história e a actualidade, aos jardins do Palácio, em duas visitas respectivamente guiadas pela comissária da conferência de Serralves, Teresa Marques, e por Paulo Farinha Marques, professor de Botânica da Universidade do Porto.
Pode-se visitar o Palácio de Cristal seguindo diferentes caminhos e objectivos: a arquitectura, entre a memória do templo de ferro e vidro da época industrial até ao modernismo do Pavilhão Rosa Mota projectado por José Carlos Loureiro, ou o desenho funcional da nova Biblioteca Municipal Almeida Garrett (e Galeria do Palácio) do arquitecto José Manuel Soares; a escultura e arte pública; mas também a faina (os pavões, principalmente) e flora, que fazem deste um destino incontornável no mapa da cidade.
A história do Palácio de Cristal propriamente dito é bem conhecida. O edifício que deu nome ao lugar foi edificado no largo da Torre da Marca segundo um projecto do arquitecto inglês Thomas Dillen Jones. Seguindo o modelo do Crystal Palace projectado por Joseph Paxton para a 1.ª Exposição Universal em Londres – primeiro instalado no Hyde Park e depois trasladado para Sydenham, a sul da capital inglesa, onde permaneceu até ser destruído por um incêndio em 1936 –, o palácio portuense foi palco da primeira iniciativa do género realizada não apenas em Portugal mas também na Península. Nesse Outono de 1865, acolheu centenas de expositores de diferentes países europeus, mas também dos Estados Unidos e do Japão, que deram a conhecer o estado de desenvolvimento de diferentes sectores, da agricultura à indústria, do comércio à própria arquitectura.
Um jardim público
Além da nave principal de exposições e outras galerias, o edifício incluía um teatro (mais tarde também cinema), restaurante, café, bazar e estufas.
Concebido, desde o início – e seguindo o modelo francês implementado por Napoleão III –, para ser um espaço público, o palácio serviu a cidade e a sua burguesia até meados do século XX, altura em que foi demolido e substituído por um Pavilhão de Desportos (actual Rosa Mota) para receber o Campeonato Mundial de Hóquei em Patins de 1952. E os espaços mais directamente destinados ao usufruto público foram naturalmente os seus jardins, cujo desenho se deve a Emilio David, arquitecto paisagista alemão contratado pelo Sociedade do Palácio de Cristal para o efeito. Entre estes, sobreviveram e permanecem hoje praticamente com o desenho original o jardim central e as duas alamedas (dos plátanos e das tílias) que ladeiam o Pavilhão Rosa Mota.
Na sua intervenção em Serralves, Teresa Marques mostrou, a partir de uma planta cartográfica de 1891, como Emilio David desenhou um jardim formal central cuja simetria enquadrava o Palácio de Cristal, então também ladeado por dois jardins de Inverno, entretanto desaparecidos, além do lago, que ainda hoje também sobrevive, ainda que com alterações na sua configuração.
“O jardim central é um jardim ecléctico, ou de estilo misto, que exprime a evolução do tempo; é simultaneamente um jardim formal e um jardim naturalista, duas épocas e duas estéticas que coexistem no conjunto”, mostrou Teresa Marques na visita guiada para o PÚBLICO, assinalando que o actual lago ao centro está no lugar da palmeira-tamareira que aí foi plantada em 1865.
Já no "passeio de Inverno" que guiou na terça-feira, no quadro das visitas públicas sazonais promovidas pela Câmara do Porto, Paulo Marques explicou também como a envolvente arbórea dos dois bosquetes – com as araucárias, camélias, ciprestes, rododendros, magnólias e outras espécies trazidas dos quatro cantos do mundo – estabelecem com o jardim um curioso efeito de “orla-clareira, sombra-sol”, que cativa sobremaneira os utentes.
Considerando que o Palácio de Cristal é uma espécie de “Central Park” do Porto, Paulo Marques mostrou como os caminhos, os jardins e os socalcos que hoje fazem o mapa do recinto são o resultado do tempo que foi passando. “O jardim é um lugar de ensaio, de experiência da relação do homem com a natureza”, disse o especialista em Botânica, assinalando que “o Porto tem um clima particularmente amável”, que favoreceu a aclimatação de espécies tão díspares como as palmeiras vindas da Califórnia ou as araucárias trazidas da Ilha de Norfolk, na Nova Zelândia.
“A imprevisibilidade do mundo vivo, às vezes, dá certo” – acrescentou Paulo Marques –, outras, deixa feridas e desequilíbrios, como os provocados pela morte de uma das quatro araucárias do jardim central, entretanto substituída; ou a situação das esguias palmeiras tropicais que estão a ser atacadas pelo escaravelho asiático...
Com todas estas marcas, o Palácio de Cristal é “um laboratório histórico” – nota Teresa Marques –, que “representa muito da história da iniciativa privada no Porto”. A arquitecta paisagista, que já dirigiu o Parque de Serralves, defende, contudo, a recuperação do carácter original do jardim central, lembrando que o desenho de Emilio David tinha um vínculo estrutural muito mais próximo do edifício do Palácio de Cristal do que o que hoje vemos com o Pavilhão Rosa Mota. “A relação com o actual edifício nunca foi bem resolvida”, acha Teresa Marques, manifestando a expectativa de que o plano actualmente em curso para a recuperação do pavilhão tenha também em conta os jardins e restantes espaços verdes envolventes.
As conferências de Serralves permitiram também ficar a conhecer melhor a biografia de Emilio David, cuja formação passou pela famosa escola de arquitectura paisagista de Berlim e Potsdam, onde contactou com Peter Joseph Lenné, conforme confirmou Teresa Marques na investigação que realizou sobre o autor dos jardins do Palácio. E também o papel que Jacques Gréber teve como arquitecto-chefe da Exposição Internacional de Paris de 1937 – e que foi o tema da intervenção do investigador da Universidade de Austin, no Texas, Danilo François Udovicki-Selb.
Aquelas duas figuras e estes dois lugares são fundamentais para entender melhor a evolução da arquitectura paisagista no Porto. “São duas histórias que se cruzam”, nota Teresa Marques, lembrando que tanto o Palácio de Cristal como a Casa de Serralves começaram por ser iniciativas privadas, mas que em diferentes momentos das suas histórias se transformaram em espaço público e em dois marcos fundamentais na vida da cidade.
Das estátuas decorativas ao simpósio de escultura em pedra
A escultura em ferro é parte integrante do imaginário romântico dos jardins do século XIX. E o jardim central do Palácio de Cristal não podia fugir a esse efeito de animação escultórica, com as suas fontes com ninfas e as estatuetas representando as estações do ano, contemporâneas da inauguração, e que vieram da famosa fundição francesa de Val d’Osne, uma das mais importantes fábricas de arte decorativa e mobiliário urbano na Europa.
Também de 1865, mesmo que agora ocupem lugares diferentes, são as amazonas e as figuras que hoje podemos ver junto à concha acústica e à Avenida das Tílias. São a “expressão da estatuária de ferro em série” proveniente da fundição francesa, e que, no século XIX, "complementava a escultura e a estatuária comemorativa dos grandes vultos e dos grandes eventos”, diz José Guilherme Abreu, historiador de arte cuja tese de doutoramento incidiu sobre A Escultura no Espaço Público no Porto no Século XX (texto editado pela Universidade Católica - Porto).
Ainda que tenha uma presença discreta, e dispersa pelos jardins do Palácio, a escultura de autor documenta duas épocas desta arte. A mais antiga vem também ainda de Oitocentos, com a escultura monumental de António Teixeira Lopes, A Dor (1898), instalada no Jardim dos Sentimentos, um dos socalcos mais baixos do recinto. Já de meados do século XX é outra obra de recorte clássico, Ternura (1956), de Sousa Caldas.
A instalação mais recente foi o busto com que, em 2013, Laureano Ribatua celebrou o rosto de Adelino Amaro da Costa (1943-1980), o engenheiro e dirigente do CDS que pereceu no desastre de Camarate ao lado de Francisco Sá Carneiro, e que em 1975 esteve presente no histórico 1.º congresso do partido, precisamente realizado no Pavilhão Rosa Mota, e que foi alvo de grande contestação pela extrema-esquerda.
Mas ainda que o Palácio de Cristal mantenha um perfil romântico oitocentista, no domínio da arte pública a presença dominante é a escultura contemporânea. E aqui destacam-se a meia dúzia de peças resultantes do Simpósio Internacional de Escultura em Pedra aí realizado em 1985 – acontecimento documentado num filme realizado pelo pintor Manuel Casimiro e pelo seu pai, Manoel de Oliveira.
António Campos Rosado, com um busto de homem e uma pirâmide, José Pedro Croft, com uma instalação-mausoléu, Lídia Vieira e Pedro Ramos, ambos com duas colunas de recorte minimal, são os artistas portugueses representados nesta selecção. Mas a obra de maior relevo é The Eagle of the Castle, do japonês naturalizado norte-americano Minoru Niizuma (1930-1998), que José Guilherme Abreu diz ter estado na origem do simpósio portuense, na sequência do contacto que com ele estabeleceu João Cutileiro (da Ar.Co) numa conferência de escultura em Washington, em 1980. “É a obra de fôlego mais poderoso, de um escultor com uma linguagem muito estabilizada”, nota o historiador de arte.
Em datas posteriores ao simpósio, o Palácio acolheu duas outras peças, Viagens (1993), de Rui Anahory, e Sácoras (2007), de Acácio de Carvalho, esta, uma estrutura em metal e pedra já bastante deteriorada. A degradação é, de resto, uma das imagens que se retém neste percurso pela arte pública do Palácio, a merecer uma maior atenção da autarquia. E José Guilherme Abreu insiste também na ideia que lançou no seu livro: instalar no lago uma réplica do icónico O Desterrado, de Soares dos Reis, que considera ser “um dos melhores escultores ocidentais do século XIX”, mas que continua a não ter, na sua cidade, a visibilidade que merece.