No cinema de Tarkovsky a camisa do actor é feita do mesmo material que a cara dele
Um guarda-roupa Tarkovsky era “extenuante” – o cineasta era obsessivo, a URSS burocrática. Memórias da designer de figurinos de Solaris e Stalker, Nelli Fomina, em vésperas da retrospectiva dedicada ao cineasta.
Trabalhar com Andrei Tarkovsky foi “uma surpresa” para Nelli Fomina. Uma ligação inesperada que viria a marcar a textura do cinema de um dos cineastas maiores da então União Soviética, um criador intenso que é agora alvo de retrospectiva em Lisboa – acompanhada pela exposição de 30 esboços e fotografias de Solaris (1972), O Espelho (1975) e Stalker (1979) da autoria de Fomina, primeiro amiga, depois responsável pelo guarda-roupa dos filmes. As imagens da exposição Mirrors do Museu de Arte Moderna de Moscovo agora estarão no cinema Nimas, em Lisboa, onde ontem foi inaugurada a retrospectiva integral dedicada ao realizador. “Se o espectador não fixar a sua atenção na observação das roupas”, diz ao Ípsilon, “é o melhor elogio que se pode fazer ao designer de guarda-roupa.”
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Trabalhar com Andrei Tarkovsky foi “uma surpresa” para Nelli Fomina. Uma ligação inesperada que viria a marcar a textura do cinema de um dos cineastas maiores da então União Soviética, um criador intenso que é agora alvo de retrospectiva em Lisboa – acompanhada pela exposição de 30 esboços e fotografias de Solaris (1972), O Espelho (1975) e Stalker (1979) da autoria de Fomina, primeiro amiga, depois responsável pelo guarda-roupa dos filmes. As imagens da exposição Mirrors do Museu de Arte Moderna de Moscovo agora estarão no cinema Nimas, em Lisboa, onde ontem foi inaugurada a retrospectiva integral dedicada ao realizador. “Se o espectador não fixar a sua atenção na observação das roupas”, diz ao Ípsilon, “é o melhor elogio que se pode fazer ao designer de guarda-roupa.”
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“Criei figurinos para mais de uma dezena de filmes”, mas o trabalho mais celebrado foi com Tarkovsky – Fomina estudou na Faculdade de Arte Aplicada do Instituto da Indústria Têxtil de Moscovo e trabalhava no estúdio Mosfilm. Foi no filme A Bailarina, com a diva do Bolshoi Maya Plisetskaya, que trabalhou com a mulher de Tarkovsky, Larissa. “Andrei estava sem trabalho depois de o Comité Estatal para a Cinematografia não ter aprovado o filme Andrei Rublev” – terminado em 1966, mas bloqueado pelo comité, o Goskino, pelo seu negrume, violência e nudez, só se estrearia anos depois. “Certo dia, Larissa convidou-me para sua casa e, desde então, a partir de 1969 e até à emigração de Tarkovsky, mantivemos relações de amizade.” Em 1970, a designer de figurinos de Solaris foi despedida e Tarkovsky chamou-a. “Nunca falara com Andrei sobre o meu trabalho”, espanta-se. Não voltou a trabalhar com ele depois de Stalker, porque “Tarkovsky foi convidado sozinho [para os filmes subsequentes]”, diz Fomina, começando a filmar fora da União Soviética.
Ao longo da entrevista, realizada por email e no seu russo natal, Nelli Fomina recorre, como faz também no livro Nelli Fomina – Costumes for the Films of Andrei Tarkovsky (ed. Cygnnet), às palavras do realizador para corroborar ideias sobre o que é um guarda-roupa Tarkovsky – exigente, meticuloso, biográfico, insatisfeito. A certa altura, cita-o mesmo através da voz um seus dos intérpretes, Nikolay Grinko, o Professor de Stalker (1979): “O meu traje era para ele não menos importante do que as minhas falas.”
Como descreveria a visão do cineasta e o olhar do seu amigo Andrei Tarkovsky?
Andrei era um interlocutor muito interessante, com uma visão original das coisas, um conhecedor e amante de música, pintura e literatura. Aprendi muito no convívio com ele. Como realizador, destacava-se pelo conceito muito especial do seu trabalho, e os seus filmes, sem semelhança com quaisquer outros, obrigam o espectador a reflectir e deixam-no agarrado para sempre. É preciso vê-los várias vezes, encontrando neles, a cada vez, coisas novas.
Trabalhar com ele era uma experiência diferente?
Como designer de figurinos, era interessante, mas também difícil trabalhar com ele. Tarkovsky procurava a apreensão e a compreensão mais correctas de todas as personagens, e exigia-o também a mim. O figurino perfeitamente adequado a cada personagem, mesmo secundário ou de um figurante, era discutido longa e minuciosamente. Andrei ouvia sempre com atenção as minhas objecções, perguntando: “Porque é que pensas assim?” E, se eu conseguia convencê-lo, dizia: “Tens razão, faz-se como tu dizes!” Trabalhava com todos os actores, contagiando-os com o seu entusiasmo.
Para si, o que acrescenta o guarda-roupa às camadas de significação de um filme?
No cinema, o figurino é um dos elementos mais importantes da construção artística e da criação do personagem e deve corresponder em plena medida às exigências da ideia artística do filme. Tarkovsky disse que “é necessária uma grande sensibilidade em relação à textura” – “a camisa do actor deve ser feita do mesmo material que a cara dele”. “Num Vermeer, uma manga rota é de um valor imperecível, é um mundo espiritualizado. Um fato novinho em folha do actor é sempre uma catástrofe. O traje, tal como qualquer outra coisa no filme, tem de ter a sua própria biografia, ligada a um homem concreto, o personagem.”
O cinema tem possibilidade de exprimir, através dos seus meios próprios, o nível espiritual da cultura humana, e o figurino é um destes meios.
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Em Solaris, em vez do look “espacial” mais previsível, de materiais sintéticos e peças extravagantes, usam-se blusões de cabedal ou camurças. Como se processaram essas decisões?
Tarkovsky disse-me logo no início: “Não haverá no filme nenhuns ‘trajes cósmicos’ senão daqui a 30 anos as pessoas vão rir-se de nós.” É preciso fazer figurinos que não distraiam o espectador da ideia essencial do filme, expressa em Solaris pelo Dr. Snaut – “O homem precisa do homem” – e do problema da “moral e consciência perante o cosmos”. E esta foi a decisão certa.
Numa masterclass que dei em Moscovo em 2011, um jovem perguntou “Como é que, naqueles tempos, arranjaram uma camisola de rede tão fixe para Kris?” [a personagem central], o que significa que, mesmo passados bastantes anos, o guarda-roupa do filme não se tornou caduco. Porque o filme não é sobre o cosmos, mas sobre as relações humanas – encontre-se onde se encontrar, o problema da consciência não abandona o homem.
Tiveram dificuldades em encontrar materiais, dado o contexto histórico e político em que trabalhavam?
Tivemos sempre complicações com a escolha dos tecidos, já que o estúdio só tinha a autorização oficial para os arranjar em determinadas fábricas. Para comprar tecidos nas lojas precisávamos de uma licença especial. Para Tarkovsky, a textura e a cor da roupa tinham sempre grande importância, pelo que me via obrigada a “inventar novas texturas”. Em Solaris tive ideia de costurar as calças de Kris a partir da camurça técnica normalmente usada para limpeza de aparelhagens – a sua textura é interessante. Molhei gaze numa emulsão diluída e colei-a no avesso da camurça. Aproveitei o mesmo material para a costura de alguns pormenores do vestido da [sua mulher] Hari, em que esta camurça, pela cor, combina bem com a pele e une a vestimenta de Kris e Hari através do colorido.
Tarkovsky transferiu elementos autobiográficos e memórias para O Espelho ou Stalker. Isso moldou o guarda-roupa?
Em O Espelho, propôs para o traje da personagem central uma cópia exacta do ornamento de um vestido de Verão que a sua mãe usava numa fotografia. Para ele era [também] importante que a farda militar do seu pai fosse reproduzida com exactidão.
A exigência do realizador [era] criar, através dos figurinos, uma imagem dos tempos de guerra. Tudo obedecia à uniformidade de cor e imagem de cada quadro. Tarkovsky disse-me: “Faz com que os figurinos sejam invisíveis.” Ou seja, que nenhuns personagens e figurantes se destacassem pela cor.
É talvez em Stalker que a vossa colaboração é mais estreita. E a ideia de força e fraqueza nos homens que Tarkovsky escolhe como protagonistas pode ser vista, por exemplo, como uma constante nestes três filmes. O que foi mais determinante na criação do guarda-roupa?
Quando o realizador leu o guião [dos escritores Arkady e Boris Strugatsky, com base no seu conto Piknik na obochine, com título em português Stalker], não gostou da figura do Stalker, a personagem principal. A imagem definitiva não foi concebida de uma vez, mas através da longa procura de pormenores da sua vestimenta. Foi necessário vestir cada personagem em conformidade com objectivo que o levou à “Zona” [a área até onde viajam as personagens para lhes serem concretizados desejos].
Sugeriu-me que fizesse para este personagem um casaco curto igual ao de Kris em Solaris, só que refeito. Não concordei, toda a gente ia perceber que vestimos Stalker com o casaco de Solaris pintado de outra cor. Tarkovsky respondeu: “Prepara a minha variante e mostra também a tua.” No armazém do estúdio, encontrei um casaco comprido, muito coçado, nem era preciso envelhecê-lo. Ao ver ambas as versões, Tarkovsky achou a minha mais persuasiva e disse: “Tinhas razão, aprova-se a tua versão! Mesmo assim, falta qualquer coisa…”
As decisões foram tomadas com o realizador, inventando, substituindo ou eliminando pormenores, numa complicada e extenuante procura da imagem exacta e definitiva de cada personagem.