Ensino vocacional, algumas notas
É fundamental diversificar a oferta formativa, ou seja, promover a diferenciação de percursos.
O chamado ensino vocacional voltou à agenda pois foi anunciado pelo Ministério da Educação (ME) e consta do Programa do Governo a sua extinção nos moldes em que foi estruturado pela equipa liderada por Nuno Crato. Como alternativa defende-se a existência de um “ensino básico integrado, global e comum a todas as crianças”, cito do Programa do Governo.
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O chamado ensino vocacional voltou à agenda pois foi anunciado pelo Ministério da Educação (ME) e consta do Programa do Governo a sua extinção nos moldes em que foi estruturado pela equipa liderada por Nuno Crato. Como alternativa defende-se a existência de um “ensino básico integrado, global e comum a todas as crianças”, cito do Programa do Governo.
A forma como esta matéria tem vindo a ser tratada, incluindo na imprensa, é, do meu ponto de vista, contaminada por alguns equívocos presentes desde logo pela colocação de questões como “sim ou não ao ensino vocacional?”. Esta formulação é reforçada pela já referida intenção de “acabar” com o ensino vocacional no ensino básico, defendendo-se que só no ensino secundário se deve disponibilizar este tipo de oferta educativa.
Como muitas vezes tenho afirmado, é fundamental diversificar a oferta formativa, ou seja, promover a diferenciação de percursos. Só por esta via me parece possível atingir um objectivo absolutamente central e imprescindível: todos os alunos devem aceder a alguma forma de qualificação, única forma de combater a exclusão e responder mais eficazmente à principal característica de qualquer sala de aula actual, a heterogeneidade dos alunos. Aliás, a oferta formativa de natureza profissional no âmbito do ensino secundário que também está a acontecer pode ser um passo nesse sentido e tem contribuído para baixar os níveis de abandono. Importa, no entanto, garantir que esta oferta não seja preferencialmente dirigida para os "que não servem" para a escola.
Parece, pois, claro que temos de estruturar percursos de ensino com formação de natureza profissional. A questão que se coloca é quando deve ser disponibilizada esta oferta e para quem.
Relativamente ao modelo que estava em vigor, sempre considerei fortemente discutível, até num plano ético, a introdução desta diferenciação tão cedo, aos 13 anos, e “obrigatória” para os que chumbam. Por outro lado, aos 13 anos, apesar de se remeter a “decisão” para um processo de orientação vocacional que a insuficiência gritante de recursos não permite assegurar, que alunos decidem? Alguém vai decidir por eles.
Poucos sistemas educativos assumem este entendimento e o facto de o ensino alemão, a inspiração de Nuno Crato, colaboradores e admiradores, o admitir não é uma certificação da correcção do modelo como atestam as apreciações internacionais.
Na verdade, relatórios da OCDE e da UNESCO têm sustentado que a colocação dos alunos com piores resultados escolares em ensino de carácter técnico e vocacional muito cedo em vez da aposta nas aquisições escolares fundamentais aumenta a dificuldade na mobilidade social. Esta dificuldade alimenta assimetrias dada a origem económica e social predominante em situações de insucesso, como dados recentemente divulgados pelo Conselho Nacional de Educação e pela Fundação Francisco Manuel dos Santos vieram, de novo, confirmar.
Neste patamar etário, mais do que de ensino vocacional, os alunos precisam de apoios que lhes permitam, bem como aos seus professores, minimizar dificuldades e risco de insucesso.
É verdade e devastador que em Portugal temos cerca de 150.000 alunos que reprovam em cada ano. Temos de responder às causas deste enorme problema mas não podemos mascarar as estatísticas empurrando os “maus” para percursos que “recebem” um rótulo de “segunda”, pois são percebidos por parte da comunidade como destinados aos menos dotados, “preguiçosos” ou com problemas vários.
Por outro lado, este tipo de oferta tem de ser adequada às comunidades educativas e dotada dos recursos e meios necessários, bem como de maior e efectiva autonomia das escolas. Como tem sido referido em diferentes avaliações e pelas direcções escolares, esta situação está longe de acontecer.
Julgo ser de sublinhar que todos os alunos deverão cumprir uma escolaridade de 12 anos e que a idade de entrada no mercado de trabalho é aos 16, o que deve ser ponderado no desenho de ofertas formativas que envolvam trabalho em empresas. Aliás, esta questão deve, é uma forte convicção, ser também considerada quando se trata de alunos com necessidades especiais que, ao abrigo de um dispositivo estranhamente designado por Currículo Específico Individual, são em algumas circunstâncias sujeitos a situações pouco claras que de educação, formação ou inclusão têm pouco, seja em espaço escolar, seja em espaço institucional ou laboral. Também por isto, o modelo que estava em vigor parece francamente desajustado, tendo sido desencadeada a sua generalização sem que nessa altura tivesse terminado a sua avaliação.
Nesse modelo, os alunos com insucesso — estamos a falar, presumo, de gente com capacidades "normais" — iriam “obrigatoriamente” para o ensino vocacional. Como já referi e é reconhecido, o insucesso escolar é mais prevalente em famílias mais desfavorecidas. Neste cenário, como a UNESCO reconhece, mantém-se formalmente a velha ordem, os mais pobres "destinados" preferencialmente para o trabalho manual e os mais favorecidos preferencialmente para o trabalho intelectual.
A diferenciação dos percursos é necessária e imprescindível mas, reafirmo, deve surgir mais tarde, disponível para todos os alunos, como se verifica na maioria dos sistemas educativos que se preocupam com os alunos, com todos os alunos. O que deve estar disponível desde sempre são dispositivos de apoio suficientes, competentes e oportunos a alunos e professores e alguma diferenciação que permita acomodar melhor a diversidade dos alunos.
Tal como aconteceu com a alteração ao sistema de avaliação, temo que as mudanças nesta matéria possam ser realizadas pressionadas pela urgência de marcar a diferença, a sempre presente tentação de quem chega ao ME, que é inimiga da reflexão e oportunidade que as mudanças exigem.
Por outro lado, julgo que as alterações a promover deveriam levar em conta e ser coerentes com as anunciadas intenções de reorganizar os ciclos de ensino no básico e alterar currículos. Uma mudança parcelar e desfasada no calendário pode não ser a melhor opção, correndo-se o risco de, mais uma vez, serem realizadas mudanças avulsas e desarticuladas.
A ideia de um ensino básico universal, com a qual em princípio concordo, não me parece contraditória com a definição de alguma diferenciação de trajectos que também defendo.
Esta diferenciação pode traduzir-se, por exemplo, na introdução no que agora é o 3.º ciclo de algumas disciplinas de natureza opcional.
A existência de um modelo curricular deste tipo permitiria, se necessário com orientação adequada, optimizar as escolhas dos alunos e a sua entrada no ensino secundário. Neste patamar deverá estar disponível uma oferta mais diversificada, incluindo alguma já de natureza profissionalizante.
Finalmente, julgo que este caminho de diferenciação deveria ser também acompanhado pelo acréscimo real de autonomia das escolas e agrupamentos, incluindo a dimensão curricular e a oferta educativa.
Professor e investigador do Instituto Superior de Psicologia Aplicada